Cartas a Eva Haldimann, publicado pela editora espanhola Alcantilado, em 2010, reúne parte da correspondência entre o escritor húngaro Imre Kertész e a crítica literária Eva Haldimann. Os dois trocaram cartas de 1977 a 2002, ano em que ele ganhou o Prêmio Nobel de literatura. A partir daí, e sempre morando em países diferentes, passaram a se comunicar por telefone ou durante as visitas que fizeram um ao outro, motivados por uma afinidade intelectual que se ampliaria em amizade entre casais: Eva com o marido, Frédéric, e Imre com Albina. Depois de viúvo, com Magda.

Nascida em 1928, também na Hungria, Eva mudou-se para a Suíça a fim de estudar literatura na Universidade de Zurique, em 1947. Não deixaria mais a capital do país, onde abandonou as análises de Shakespeare e Racine para assinar a coluna de crítica literária no Neue Zürcher Zeitung, o prestigioso e mais antigo jornal suíço. Anos depois, ela passaria a se interessar vivamente pela literatura húngara, até que lhe chegou às mãos o exemplar do primeiro livro de Kertész, Sorstalanság, publicado em Budapeste em 1975, e lançado no Brasil com o título Sem destino.

O romance se baseia na história do próprio Kertész. Narra a história de Göves György, um judeu de quinze anos, deportado da Hungria para o campo de concentração de Auschwitz. O interesse do autor “se concentra na descrição do despertar de uma consciência que se opõe a qualquer aceitação de um determinismo do poder e da violência” – considera Haldimann, para quem o escritor, logo na estreia, atinge “uma unidade perfeita na forma e no conteúdo”, além de destacar-lhe o talento para mostrar, com “nitidez glacial, o mecanismo totalitário que destrói o indivíduo desamparado”.

Ao resenhar o livro para o jornal suíço, Eva Haldimann projetava o nome de Kertész não só para os leitores de língua alemã como em toda a Europa. Sua análise arguta e equilibrada consagrava o autor de uma narrativa indispensável sobre o Holocausto e uma das obras literárias mais importantes da segunda metade do século xx – é o que confirmaria a crítica universal.

Em 20 de maio de 1977, portanto, dois anos depois do lançamento de Sorstalanság, Kertész envia a primeira carta a Eva, agradecendo-lhe as palavras elogiosas no Neue Zürcher Zeitunge sobre Sem destino. Ao agradecimento, ele anexa o seu segundo livro, A Nyomkeresö (El buscador de huellas). Inicia-se, desse modo, a relação epistolar entre escritor e crítica literária.

A pequena e bem cuidada edição de 153 páginas de Cartas a Eva Haldimann não só inclui 62 cartas como, em anexos, acrescenta notas esclarecedoras, dados biográficos e – importantíssimo – trechos das análises, por Haldimann, das obras de Kertész.

É curiosa essa correspondência porque, ainda que se conheçam apenas duas cartas de Eva, sua voz ressoa com bastante clareza nas sessenta que Kertész lhe enviou. A julgar pela edição da Acantilado, ele preservou a carta que recebeu da amiga em 1991, quando da morte de sua mulher, Albina. “Não posso crer no que leio, querido Imre, com a notícia inesperada, sabedores que somos do que ela representava na sua vida” – escrevia a amiga solidária e comovida. Além desta, lê-se, nesta edição, a alegria da remetente em 26 de novembro de 2002, ao saber que o amigo ganhara o Prêmio Nobel de Literatura daquele ano: “Eu tinha definido sua obra como a do autor contemporâneo mais importante da Hungria, como a obra-chave do pensamento europeu e humano em geral” – exultava ela, não sem orgulho de seu acerto. Parte da afirmação certamente se funda na coletânea de ensaios de Kertész, publicada no Brasil sob o título A língua exilada.  Neste livro está presente a ideia de que o Holocausto não é um acontecimento restrito aos nazistas e aos judeus, mas uma experiência de caráter universal.

Entre a primeira carta e a que acabo de citar, a última do livro – a amizade entre os dois se estreita, seja por meio de longos telefonemas ou de jantares acompanhados de bons vinhos na cidade europeia onde fossem possíveis os encontros dos dois casais. Por meio da correspondência, o leitor acompanha a evolução de uma amizade, a afinidade intelectual que se depura ao longo dos anos, e a confiança que se estabelece entre os pares. A troca torna ainda evidente a importância do papel de Eva na vida literária de Imre.

“A felicidade é um dever”, citou certa vez Kertész esta frase de Proust, dizendo  o quanto procurava alegria no trabalho. Convida a amiga – e é atendido – a compartilhar do seu cotidiano, das leituras que o seduzem, da devoção ao ofício de escritor, de que eram testemunhos os livros que lançou ao longo da vida, findada em 2016, na sua casa, em Budapeste, cidade onde Eva Haldimann mora até hoje, aos 92 anos neste 2019.

Mais do que troca de ideias de dois literatos, as cartas que Kertész enviou a Eva Haldimann mostram como, aos 44 anos, nasce um escritor que transforma a experiência medonha do Holocausto em uma obra consagradora e porta de entrada para toda uma carreira de sucesso. A correspondência revela ainda o destino improvável: o escritor maduro, capaz de apreciar uma boa mesa e um alegre encontro com os amigos, é o rapazinho que escapou de Auschwitz, personagem de Sem destino.