Entre os religiosos, não há dúvida: a monja carmelita espanhola Santa Teresa D’Ávila, que viveu no século XVI, ganhou o céu por meio do exercício da oração, pela capacidade de renúncia e, sobretudo, pela absoluta entrega de si mesma ao Cristo. Os ateus, descrentes dessas práticas, mais a conhecem pelo mármore em que Bernini a representou, hoje em altar na capela Cornaro, na Igreja de Santa Maria della Vittoria, em Roma.

A carga de erotismo que o escultor italiano pôs em O êxtase de Santa Teresa tem sido alvo de discussão de historiadores, críticos de arte, religiosos e até mesmo de psicanalistas. Só não sei o que pensam as freiras do Convento de Santa Teresa, que deu origem ao bairro carioca.

Como antiga moradora de Santa Teresa, há 46 anos convivo com a religiosidade que vem do mosteiro. Ali fui rezar em noites de Natal, quando não se tinha medo de descer a rua à meia-noite, a pé, para assistir à Missa do Galo e se podia ouvir o canto suave das noviças por trás das grades pontiagudas que as mantinham separadas – por quê? – do altar.

Ali mesmo, mas através de grades do parlatório, entrevistei a monja Maria do Carmo do Cristo Rei, prima de Manuel Bandeira, quando eu escrevia meu primeiro livro, no início da década de 1990. Depois, em época menos religiosa ou literária, o Convento seria apenas passagem para as minhas noitadas no bar Carioca na Gema, quase embaixo dos Arcos da Lapa.

Construído bem no pé do morro, o mosteiro coroa de santidade a Lapa profana. Santa Teresa D´Ávila haveria de gostar dessa proximidade, ela, que, lê-se nos três volumes de sua correspondência, revela-se tão humana nas dores físicas, na indignação com as noviças, assim como na arte de fazer política com os diretores de outras casas religiosas de seu país.

Sem que a causa fique clara nas cartas, Teresa Sánchez de Cepeda y Ahumada, nome de batismo da freira, sofria o incômodo de barulhos e sons na cabeça, como se lê na carta que escreve ao padre Ambrósio Mariano de São Bento:  “Saiba, meu padre, que as muitas cartas e ocupações que tenho, sem haver quem me ajude, foram parar em causar-me ruído e fraqueza na cabeça”.

O desconforto desses ruídos não diminuiriam sua energia em relação ao severo tratamento que dava às freirinhas. Veja-se a espantosa  praticidade de sua recomendação a uma priora que lhe mandara  água de flor de laranjeira para curar o barulho na cabeça:  “Essa outra noviça, se é tão boa, receba, porque precisa de muitas, já que têm morrido tantas. Vão para o céu, não fique triste”. Simples assim.

Teresa D´Ávila privilegiava a alegria, para ela uma forma de amor, e não hesitava em barrar a entrada de novata triste: “Diz nosso padre que a seu ver é uma beata melancólica, e já devíamos estar encarmentadas, pois será pior mandá-la embora depois de recebida”. Melhor cortar o mal pela raiz, portanto.

Personalidades assim fortes não deixam de inspirar lendas, e atribuem-se muitas a Santa Teresa. Conta-se que, numa de suas conversas com Deus, ela perguntou por que Ele punha tantas dificuldades no caminho dos que o seguiam. Quando o Senhor lhe justificou (ela conversava livremente com Ele), que assim tratava seus amigos, ela teria lhe respondido, na lata: “É por isso que os tendes tão poucos”.

Sua bravura e irreverência não serviriam apenas para gerar lendas, além de fundar a Ordem das Carmelitas Descalças. Em 1652, quando se completaram setenta anos de sua morte, Bernini deu por terminada a escultura a que se dedicara durante cinco anos e em que a santa, canonizada em 1622, é representada com a cabeça “jogada para trás, a boca aberta num gemido, o lábio inferior recuado, os olhos quase cerrados, os ombros encolhidos numa postura de defesa e desejo. Ao lado dela, um sorridente serafim delicadamente lhe descobre o peito para facilitar a penetração da flecha” – assim descreve a obra o historiador e crítico Simon Schama em “O criador de milagres: Bernini”, em um dos capítulos do clássico O poder da arte.

O texto de Schama é claro e abre com a pergunta: “Será que alguém consegue ver O êxtase de Santa Teresa, de Bernini, com olhos inocentes?” Conta ele, com delícia, de uma visita que fez à Capela Cornaro, onde observou a reação de umas freirinhas diante da escultura:  “benzeram-se como puderam, e foram embora”, enquanto uma outra ficou, cabeça baixa, rezando durante algum tempo – segue ele.

Certamente esta pedia perdão a Deus pelo que via. E devo estar certa, porque – afirma ainda Schama –, os estudiosos, insistindo na límpida beatitude da santa, não se rendem ao que o público vê. Assim como o que viu a freirinha antes de se ajoelhar, baixar a cabeça e rezar.

Dizem eles, os especialistas, dos quais Schama discorda, que a obra “jamais poderia ser um momento de entrega sensual, pois Bernini era notadamente devoto, e a santa esclarece em sua autobiografia que a dor não é física, mas espiritual”.

Mas é aí que entra a compreensão maior de Simon Schama: “Na verdade, porém, o anacronismo moderno não é a união de corpo e alma repisada por tantos poetas e escritores do século XVII, e sim sua pudica separação em experiência sensual e experiência espiritual. Na época de Bernini, entendia-se e experimentava-se o êxtase como sensualmente indivisível”.

Não só se entendia, como a própria Teresa D’Ávila, em seu Castelo interior ou moradas, escrito aos 62 anos de idade, que li para entender minhas vizinhas do Convento, afirma que tudo o que ela deseja é o amor indiviso, por meio do qual ela se sente unida a Deus, “toca a Deus”. Isso na quinta morada, a caminho da sétima e última morada, ponto culminante da vida mística e momento de abandono integral ao Senhor, quando se dá o matrimônio com Deus.

Tendo Bernini vivido na época em que experiência sensual e espiritual eram indissociáveis, e considerando-se que pode perfeitamente ter lido Castelo interior – aliás, deve ter lido –, o que lhe faltou, então, para representar a santa “num momento de convulsão orgástica”, como escreve Schama ao contestar historiadores que não viam fundamento para tal afirmação? É o que me pergunto, do alto da minha falta de especialização, mas certamente me juntando ao “público que vê”, simplesmente. Bem disse um visitante, registrado ainda por Shchama, que, diante da escultura, não titubeou: “Bom, se isso é amor divino, eu sei muito bem como é”.