Uma viagem por vários países é o tema de Querida Diana, obra em feltro, esferográfica, giz e lápis da artista franco-americana Niki de Saint-Phalle. Vamos percorrendo o papel, guiados pelos números que organizam a sequência de eventos. Primeiro uma curta estadia em Paris (“Muito cara”, #6), depois Londres (“Uau!” #7) e dali para Roma (“Um milhão de vezes melhor que todos aqueles cartões-postais” #8). Tudo isso pode ser visto no quadro de 56,3 x 76,2cm, hoje em exibição no Centro Pompidou, em Paris.

Diante de pinturas ou de desenhos, somos observadores. Mas quando a obra de arte é ao mesmo tempo uma carta, assumimos também o papel de destinatários, de confidentes. Assim, ficamos sabendo dos namoricos de viagem, que não poderiam faltar: “Conheci Pierre, um francês, uma pessoa tão bonita, acabou de voltar da Índia” (#11), mas o namoro dura só até o número 21, enumeração feita pela autora para marcar sequência de episódios: “Novo moço chamado Ron (um sonho!). Pierre e eu terminamos”. Em meio ao visto e ao vivido, um casal tem engrenagens girando dentro da cabeça, o texto conta: “Fizemos juntos nossa primeira viagem de ácido no deserto, sentindo cheiros, cores, natureza. Mmmmm!” (#21).

O roteiro de Querida Diana revisita os temas que marcaram os anos 60: amor livre, alucinógenos, interesse pela espiritualidade oriental, psicodelia, modos alternativos de vida, quebra de convenções sociais. E de convenções sociais Niki entendia muito bem. Nascida em Neuilly-sur-Seine, na França, em 1930, mudou-se com a sua aristocrática família para Nova York, em 1975. Niki foi educada para circular com desenvoltura nas altas rodas e, quem sabe, tornar-se a esposa perfeita de algum milionário americano (era a esperança dos pais), numa época em que questões ligadas à religião, sexualidade e violência eram tabu. A irreverência e a ousadia que viriam a caracterizar sua obra denunciavam reações contra a sociedade conservadora e a família decadente, mas não só. Quando criança, Niki foi abusada sexualmente pelo pai. A experiência traumática e reprimida da infância estaria na base de um colapso mental que, na idade adulta, a levaria a ser internada num hospital psiquiátrico. Foi nesse período de dor e restauração que começou a fazer aquarelas e colagens. Ela atribui sua recuperação à arte, e diz que saiu do hospital sabendo o que deveria fazer: tornar-se artista.

Os trabalhos do começo da carreira misturam revolta, raiva, desprezo, melancolia e força. Niki ganhou notoriedade com a série Tiros – mistura de performance e pintura, registrada em vídeo, em que a artista, literalmente armada com uma espingarda, atira em telas nas quais bolsas de tinta e tubos de spray se escondem sob uma fina camada de tinta formando um grande bloco branco. Com a violência dos tiros, essas bolsas de tinta arrebentam fazendo “sangrar” cores sobre a tela, antes branca. Criação e destruição aparecem como opostos complementares ou, ainda, a destruição aparece como condição para a criação. Mas, quando em 1970 a artista faz Querida Diana, os tempos e os sentimentos eram outros. Expurgados os demônios, surgem, nos desenhos, gravuras e esculturas, as figuras femininas corpulentas e coloridas chamadas Nanas, que passarão a ser a marca registrada da artista.

As cartas de Niki trazem todo tipo de criaturas: árvores, flores, pássaros, amigos, monstros, amantes, dragões, dinossauros. Não há interesse em criar efeitos de volume, a artista prefere as figuras claramente bidimensionais, com cores fortes e chapadas. As cartas escritas para amigos são, muitas vezes, imaginárias, sem a intenção de envio (isso ajuda a entender por que Querida Diana está no acervo de um museu).

Há ainda missivas tão ricamente ilustradas quanto Querida Diana que, de fato, chegaram aos destinatários. Postadas ou não, as cartas falam sobre sonhos, sentimentos e vivências, numa caligrafia própria que rapidamente aprendemos a reconhecer. As palavras circundam as imagens, ou indicam um caminho que conduz o olhar entre elas. A estrutura narrativa se forma na interação entre intervenções manuscritas e ilustrações, um pouco como acontece nas histórias em quadrinhos. As imagens, por vezes, são acompanhadas apenas por breves notícias ou uma mensagem curta, como “Oi, me liga, obrigado”. Mas Niki também escreveu cartas mais longas, compartilhando o dia a dia, viagens e projetos de trabalho. Algumas cartas incluem desenhos preliminares para projetos e exposições que realizaria, outras descrevem mostras que visitou. Há ainda lugar para temas existenciais como a morte, o amor, o passar do tempo, combinando experiências pessoais e narrativas fantásticas.

Dos inícios e fins dessa correspondência brotam apelidos afetuosos usados com pessoas próximas e com ela mesma. O marido, Jean Tinguely (escultor e colaborador de Niki), por exemplo, é “pequena flor de sal”, “Papai Noel”, “guardião da luz”, enquanto a artista assina “Nikita”, “sua flor do deserto”, “tipo crocodilo”, “a erva daninha”… O nomear variado revela nuances da relação, muitas vezes tempestuosa.

Criação artística e representação biográfica se articulam para formar a base da obra de Niki de Saint Phalle, que dizia: “No meu trabalho, estou condenada a revelar todas as emoções, pensamentos, lembranças e experiências, transformados – eles se tornam outra forma, outra cor, outra textura. Tudo é usado – grandes alegrias, desejos, tragédias e dores”.

Assim, não podemos nos esquecer de que as cartas da artista não são revelações espontâneas e imediatas de seu mundo pessoal. Formas, técnicas e temas são cuidadosamente planejados e executados. Podemos ver as cartas como estratégia artística: por um lado, oferecem um modo de representação de sua autobiografia, na medida em que constroem uma espécie de cartografia de seu mundo simbólico e íntimo. Por outro, a escolha do formato da carta permite também algum distanciamento, como um manto protetor, mais difícil de ser usado em situações de exposição pública direta (como nas performances dos Tiros).