Meu caro poeta: no dia 30 de julho passado fizeste sessenta anos. Não dou os parabéns a ti, mas a mim e a todos os convivas de tua poesia. Imagina que em uma galáxia remota estejam reproduzidas todas as formas terrestres – a antimatéria de que falam esses descabelados românticos da realidade, os físicos modernos. A tua contraimagem acha-se nesse espaço incerto do cosmos e vai repetindo de certo modo todos os teus gestos terrestres. Quero dizer-te o seguinte: a tua poesia me parece uma tentativa de reprodução da tua antimatéria, da tua contraimagem, do teu retrato cósmico. Dizes que tens pupilas assustadas de ave noturna. A gente te olha e vê que é verdade; no entanto, onde descobriste essa verdade? Não foi no espelho claro de teu quarto: foi no espelho turvo do infinito poético. É desse abismo que vais há tanto tempo copiando a outra imagem de ti mesmo e as outras imagens de todas as coisas.
Os objetos que te impressionam são comuns: a caneta com que escreves, os telhados, as tabuletas, a vitrine do bric.[1] Teus animais são os que estão mais próximos do homem: boi, cavalo. As sensações que te fazem pulsar são as mais cotidianas: como a de um gole d’água bebido no escuro. Os sons que te empolgam são os ritornelos de infância ou o fundo suspiro que se some no ralo misterioso da pia. Os mitos que te assombram são os mais familiares: o anjo da guarda, o menino Jesus, Frankenstein, Simbad, Jack, o Estripador, Lili, tia Élida, o major Pitaluga, o retrato do marechal Deodoro proclamando a República. Como fazer desses elementos uma grande poesia? Só há um jeito: deles reproduzindo, não o traço descritivo, mas o contorno de uma contraimagem, e isso é a tua poesia.
Uma vez, iluminado, um amigo me contou que esta vida, a nossa vidinha terrestre, também é sobrenatural; Guimarães Rosa vive o mistério de aquém-túmulo; Bandeira pensa que tudo é um milagre, menos a morte. Teus quintanares,[2] poeta, são dessa mesma linha: não decifram, denunciam o mistério. O aprendiz de feiticeiro acabou envolvido pela feitiçaria, assim como o aprendiz de realidade, o cientista, acabou envolvido pela possibilidade fantástica da antimatéria.
Acho tua poesia a mais asiática da lírica brasileira:
O mundo é frágil
E cheio de frêmitos
Como um aquário…
E quando dizes de Camões: “Seu nome retorcido como um búzio”.
Ou quando traças uma linha despojada: “Havia no arco do aljibe trepadeiras trêmulas”.
Esses riscos puros, dos chineses e dos persas antigos, refazem a novidade dos objetos: é por intercessão de tua poesia que posso ver uma haste ou uma andorinha com os olhos maravilhados dos homens que viram subir ao céu os primeiros balões.
Era adolescente, aí mesmo em Porto Alegre, quando encontrei os teus poemas. Mudei de cidades, de bairros, de casas: teus livros mais antigos sempre me acompanham. Alguns de teus poemas e muitos de teus versos não precisam estar impressos em tinta e papel: eu os carrego de cor e, às vezes, eles brotam espontaneamente de mim como se fossem meus. De certo modo, eles são meus, e hás de convir comigo que a glória melhor de um poeta é conceder essas parcerias anônimas pelo mundo. Pois a poesia é de quem se apossa dela. De minha parte, confesso-te, eu me orgulho de tua poesia. Havia um corredor que fazia cotovelo: um mistério encanado com outro mistério, no escuro… Na surpresa desses dois mistérios encadeados, te envio o meu abraço de aniversário.
Crônica de Paulo Mendes Campos publicada na Manchete, Rio de Janeiro, 20/08/1966. Arquivo Paulo Mendes Campos / Acervo IMS.
[1] N.S.: Provavelmente abreviatura de bricabraque, loja de objetos usados.
[2] N.S.: O neologismo Quintanares aparece pela primeira vez em “Canção do barco e do olvido”, poema de Mario Quintana dedicado a Augusto Meyer e publicado em Canções (1946). Por ocasião do lançamento desse livro e dos quarenta anos do poeta, Cecília Meireles dedica-lhe o poema “Quintanares”. Manuel Bandeira consagrará o termo ao utilizá-lo em “A Mario Quintana”, poema com o qual o gaúcho foi saudado em sessão na ABL em 25 de agosto de 1966. Quintanares ainda se tornaria o título de uma antologia de Quintana publicada em 1976.