São Paulo, 15 de novembro de 1904
É cheio do passado que te escrevo. Imagina que fui ao Rink (coisa que não conheces: patinação) e lá encontrei numa roda de quatro a moça mais bela que a Natureza ainda produziu. Bela, fina, elegante… Estes adjetivos já não dizem nada por causa dos abusos do Macuco. Sabe o que é o belo, Rangel? É o que alcança uma harmonia de formas absolutamente de acordo com o nosso desejo. Se um mínimo senão na asa dum nariz rompe de leve essa harmonia, a criatura pode ser linda, bonita, encantadora — mas bela não é. Pois aquela moça era bela, Rangel. Chamava-se nos seus 14 anos, Belita, Isabelita — Isabel. Foi o meu primeiro amor, em Taubaté.
Mas falemos em coisas profanas. Li o teu último artigo… Nunca viste reproduções dum quadro de Gleyre, Ilusões perdidas? Pois o teu artigo me deu a impressão do quadro de Gleyre posto em palavras. Num cais melancólico barcos saem; e um barco chega, trazendo à proa um velho com o braço pendido largadamente sobre uma lira — uma figura que a gente vê e nunca mais esquece (se há por aí os Ensaios de crítica e história do Taine, lê o capítulo sobre Gleyre). O teu artigo me evocou a barca do velho. Em que estado voltaremos, Rangel, desta nossa aventura de arte pelos mares da vida em fora? Como o velho de Gleyre? Cansados, rotos? As ilusões daquele homem eram as velas da barca — e não ficou nenhuma. Nossos dois barquinhos estão hoje cheios de velas novas e arrogantes, atadas ao mastro da nossa petulância. São as nossas ilusões. Que lhes acontecerá?
Somos vítimas de um destino, Rangel. Nascemos para perseguir a borboleta de asas de fogo — se a não pegarmos, seremos infelizes; e se pegarmos, lá se nos queimam as mãos. Nós três, eu, você e o Edgard,[1] sofremos da mesma doença e, pois, trilharemos as mesmas sendas e voltaremos ao cais na barca de Gleyre — com aquele mastro caído, a lira largada, a bússola sem agulha. E por que isso, Rangel? Porque em nós três há uma coisa que nos obriga a partir, a caçar a borboleta, embora certos de que o retorno será na barca de Gleyre. Essa coisa dentro de nós é o que explica a imensa disparidade entre você e o [Oscar] Breves, entre o Edgard e o [Artur] Goulart, entre eu e o Macuco. O que não impede que Breves, Goulart e Macuco nos olhem com profundo desprezo. Devemos ser para eles o que eles são para nós.
Estamos moços e dentro da barca. Vamos partir. Que é a nossa lira? Um instrumento que temos de apurar, de modo que fique mais sensível que o galvanômetro, mais penetrante que o microscópio: a lira eólia do nosso senso estético. Saber sentir, saber ver, saber dizer. E tem você de rangelizar a tua lira, e o Edgard tem que edgardizar a dele, e eu de lobatizar a minha. Inconfundibilizá-las. Nada de imitar seja lá quem for. Eça [de Queiroz] ou Ésquilo. Ser um Eça II ou um Ésquilo III, ou um sub-Eça, um sub-Ésquilo, sujeiras! Temos de ser nós mesmos, apurar os nossos Eus, formar o Rangel, o Edgard, o Lobato. Ser núcleo de cometa, não cauda. Puxar fila, não seguir.
O trabalho é todo subterrâneo, inconsciente; mas a Vontade há que marcar sempre um norte, como a agulha imantada.
Esses nossos desalentos, esses nossos tédios iterativos, esses nossos desesperos, provam a favor, Rangel, não provam contra. São reflexos da misteriosa gestação subterrânea. Como vem isso? Sempre como eco do constante processo analítico inerente à gestação. Você lê uma página genial de [Victor] Hugo e a comparação inconsciente que fazes entre ele e você desnuda-te uma aparente inferioridade. Eu vejo uma cena, procuro o meio de transmiti-la por meio de palavras, não consigo e perco a confiança em mim. O Edgard sente uma sensação nova, estranha, jamais sentida por ninguém no mundo; analisa-a, não a apreende — e ei-lo de dia estragado, azedo sem saber por quê. Mas esse eterno “procurar”, Rangel, é que é a grande coisa que há dentro de nós e não há no Macuco. O Macuco não procura coisa nenhuma, porque está certo de que é um gênio e não precisa de coisa nenhuma.
Cansado de desanimar, eu não desanimo mais, depois que apanhei a causa dos meus desânimos. Trabalho às ocultas lá no subconsciente. Em quê? Na afinação da lira e na fixação com palavras do que ela apanha. O sonho, sabes qual é — o sonho supremo de todos os artistas. Reduzir o senso estético a um sexto sentido. E, então, pegar a borboleta!
Você me pede um conselho e atrevidamente eu dou o Grande Conselho: seja você mesmo, porque ou somos nós mesmos ou não somos coisa nenhuma. E para ser si mesmo é preciso um trabalho de mouro e uma vigilância incessante na defesa, porque tudo conspira para que sejamos meros números, carneiros dos vários rebanhos — os rebanhos políticos, religiosos ou estéticos. Há no mundo o ódio à exceção — e ser si mesmo é ser exceção. Ser exceção e defendê-la contra todos os assaltos da uniformização: isto me parece a grande coisa. Se a tomarmos como programa, é possível que um dia apanhemos a borboleta de asas de fogo — e não tem a mínima importância que nos queime as mãos e a nossa volta seja como a do velho de Gleyre.[2]
Lobato
Monteiro Lobato. A barca de Gleyre. São Paulo: Brasiliense, 1972, pp. 50-52.
[1] N.S.: Edgard Jordão, amigo de Lobato. Em homenagem a esse amigo, Lobato deu o nome de Edgard a um de seus dois filhos.
[2] N.A.: Há um erro aqui. Esse quadro de Charles Gleyre, que entrou para o museu Luxemburgo e de lá passou para o Louvre, sempre foi vítima de traições. Gleyre denominou-o Soir, mas o público foi mudando esse nome para Illusions perdues, e assim ficou. Eu também mexi no quadro. Pus o velho dentro da barca e fiz a barca vir entrando no porto, toda surrada. Traí o pobre Gleyre. Sua barca não vai entrando, vai saindo, como se deduz da direção do enfunamento das velas…