São Paulo, 20 de julho de 1848

My dearest,

Nada por aqui tem ocorrido de novo, nada digno de ser-te contado. Quanto a mim, só tenho a dar-te uma notícia: estou fazendo uma imitação em verso do quinto ato do Otelo de Shakespeare.

Sou o homem das reações, como sabes: dei ago­ra em não mostrar versos a ninguém; e aqui em São Paulo não há alma viva nem morta que lesse versos meus, exce­to os do álbum da O…[1] que remeti-te já. Por isso ainda está virgem e inédita a minha imitação, que nem acabada ainda está. É longo demais o que há já feito pa­ra que eu possa mandar-te: por isso ficará para outubro; e então juntos leremos o meu trabalho.

Anteontem partiu para Santos o… — um bom velho. Eu e mais rapazes o acompanhamos até légua e meia de distância. Era noite quando voltamos. O céu estava nublado e escuro. Só se via, dum amarelo aver­melhado, a estrada até uns vinte passos, perder-se no es­curo das matas negras: parecia uma ponte em lago de tinta. E além, lá ao longe, se levantava a cidade negra; e os lampiões, abalados pela ventania, pareciam esses me­teoros efêmeros que se levantam das paludes e que as tradições do Norte da Europa julgavam espíritos destina­dos a distrair os viandantes, a correrem sobre o pântano imenso e preto… ou estrelas de fogo, faíscas de algu­ma fogueira do inferno semeadas sobre campo negro. E do outro lado, à minha esquerda, uma barra vermelha se estendia, formando do lado do poente um segmento de cír­culo no horizonte e semelhava um reflexo de um incêndio imenso que alastrasse um lado do globo.

Eu parei o cavalo e admirei! Tinha ido com outros e, tendo galopado, os outros ficaram-me no caminho. Parei e admirei esse espetáculo belo! essas nuvens cor de cinza e esfumaçadas! esse céu ermo de estrelas… E a brisa balsâmica embatia e sacudia, estremecendo as ca­poeiras e silvava nas árvores, nos outeiros; e sozinha, por entre a mudez da noite que se aproximava, uma ave des­conhecida descantava o seu hino de adeus ao dia que morrera nas trevas…[2]

E então, meu Luís, eu senti como que exalar-se de mim também um hino de tristeza, lânguido como um adeus, mas, se de lágrimas, menos amargas. E esse cântico, esse pensamento tão doce a incensar-me a mente, era uma ideia de saudade: eras tu.

E bem longos três meses têm ainda de correr até que esta minha saudade se cale. Ela é doce, decerto, que é bem doce o pensamento de ter-se um amigo ainda que ausente: é bem doce, mas duma tristeza despedaçadora que prostra o coração.

Meus prazeres
Foram só meus amigos, — meus amores
Hão de ser neste mundo eles somente.[3]
                                                            G. Dias

Se eu quisesse algum dia descrever o sentimento — como eu o experimento — da amizade, não acharia decerto dois versos que o traduzissem melhor.

Azevedo

Cartas de Álvares de Azevedo. Comentários de Vicente de Azevedo. São Paulo: Biblioteca Paulista de Letras, 1976, pp. 99-100.

[1] N.S.: Olímpia Coriolano da Costa, mulher do poeta Gonçalves Dias.
[2] N.S.: Reflexos desse passeio podem ser lidos na peça Macário, como no ato em que os personagens Macário e Satan estão na estrada, este montado num burro e aquele na garupa: “Satan: Daqui a cinco minutos podemos estar à vista da cidade. Hás de vê-la desenhando no céu suas torres escuras e seus casebres tão pretos de noite como de dia, iluminada, mas sombria como uma essa de enterro. […] A cidade colocada na montanha, envolta de várzeas relvosas, tem ladeiras íngremes e ruas péssimas. […] Macário: Ali vejo luzes ao longe. Uma montanha oculta no horizonte. Disséreis um pântano escuro cheio de fogos errantes. Por que paras o teu animal? […] Que ruínas são estas? É uma igreja esquecida? A lua se levanta ao longe nas montanhas. Sua luz horizontal banha o vale, e branqueia os pardieiros escuros do convento”. Não só em Macário há alusão a essas ruínas. Elas também aparecem no conto “Ruínas da Glória”, de Fagundes Varela.
[3] N.E.: “Quadras da minha vida, VI”. Primeiros cantos. Rio de Janeiro: Laemmert, 1846, p. 218.