Rio de Janeiro, 6 de abril de 1964
Glaubiru, Glaubiru,
Barbarizou, barbarizou. Que agitação, que confusão. Teu rosto me aparece tão nítido, mas tão rápido, entre tantas outras coisas, depois de tanto tempo. O essencial foi dito e sentido. E espero que os dólares já estejam em tuas mãos. Depois foi aquela coisa terrível, todo mundo falando do teu filme, de ti, quase que me fazendo sentir culpável de não tê-lo visto. E de sentir aquele monte de gente para os quais você era o centro de gravidade me agoniava ainda mais, pois que você estava um pouco em cada um deles, mas inteiro em nenhum. Tua cara estava forte e calma, e, como nosso problema é mais de calma que de força, isto me deu a sensação que estavas bem.
Eu vi o filme e vou revê-lo. Tenho muita coisa a dizer. Mas acho besta e contraproducente este delírio geral, que prejudica a compreensão. E evidente que, gostando de Barra[1] como eu gosto, nada para mim seria surpresa, enquanto aqueles que não compreenderam Barra agora querem se redimir. Se você quiser saber numa frase, eu acho que Antônio das Mortes e os cangaceiros representam um avanço, enquanto os beatos, ainda envolvidos pelo caos, como em Barra, mas paradoxalmente sem o fervor místico deste, apenas ampliam tua problemática, sem encaminhá-la para uma solução. No filme, você não está suficientemente afastado nem suficientemente perto da religião. Em Barra, você acreditava, tendo vontade de não acreditar. Em Deus-Diabo, porque você acredita menos, tua vontade de não acreditar, de te afastar, é menor. Estou tentando dizer que, para mim, você ficou a meias entre a convicção e a distância. O que eu gostava em Barra, que era ver Firmino e você não acreditar, acreditando — yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay —, não tem nos beatos. Eu achava que você se libertaria dessa mística religiosa, levando-a a um paroxismo insuportável, e a leitura da história dava a entender isso, mas a tua vontade de afastamento impediu isso, sem ser suficientemente forte para despreender-te totalmente. Você tem em você um beato que começa a descrer, mas ainda não deixou de ser beato, ao lado de um cangaceiro que não acredita mais em beatos e acha que o homem só tem validade quando pega nas armas para mudar (ou fazer) seu destino. O que me impressiona, porém, é como essas coisas se sentem na direção anárquica e descontrolada para os beatos, rigorosa e solene para os cangaceiros. Luiz Carlos Maciel me disse que você queria fazer o contrário. Mas a gente faz o que deve, e não o que quer. A beleza nos beatos vem por iluminações fugidias, é descontínua. Nos cangaceiros, ela não vem de nenhum lugar, ela já está lá quando aparece Corisco, e só faz aumentar até o final. Ela nasce da terra, tem os pés no chão. Ela tem em relação à beleza dos beatos a mesma relação que tem Corisco com Sebastião, uma relação de superioridade. E agora uma intuição, eu senti o misticismo maior nos cangaceiros que nos beatos. As relações sobrenaturais de Corisco com Lampião, e as relações de Corisco com o sobrenatural (fechamento do corpo), me pareceram mais fortes que as relações do vaqueiro com o beato, e do beato com Deus. É nessa linha que o filme me preocupa. Há muito mais a dizer, eu não tenho pressa. Que é o filme de maior voo jamais feito no Brasil, você já sabe. Por isso mesmo é que você encontra mais dificuldades de realização que Paulo e Nelson. Acho que você já conseguiu dois terços do que quer. Com mais um, você estoura, e o sertão vira mar, e o mar, sertão.
Mas o que estou pensando é que você deve estar é preocupado com a política. E que eu, no meio dos acontecimentos, te imagino também neles. O importante é o seguinte: nenhuma das pessoas que conhecemos foi presa. Isso dá o tom de tudo: entre Rio e São Paulo, há cinco mil pessoas presas. O golpe que a direita queria dar há dez anos, finalmente deu. Jango achou que estava apoiado pelos generais e pelos sargentos. Houve um incidente na Marinha, Jango ficou do lado dos marinheiros e cabos, e a direita aproveitou para precipitar o dispositivo militar de um golpe que estava sendo preparado há meses. O primeiro foi Magalhães Pinto, que declarou as tropas mineiras em rebelião, foi em seguida apoiado por Adhemar de Barros, enquanto Lacerda se entrincheirava no seu palácio. O Exército dividiu-se e, como a direita tinha maior cobertura militar que a esquerda, estes se aliaram logo, na base do não derramamento de sangue (obsessão de Jango), da defesa da ordem e do anticomunismo. Sobrou só o Rio Grande do Sul, mesmo assim dividido, e Jango partiu declarando que não queria derramar o sangue do nobre povo gaúcho. Foi uma quartelada no velho estilo latino-americano, sem que a legalidade tenha sido respeitada ou defendida, porque todos estavam com medo da política de Jango. Hoje os governadores Adhemar, Lacerda, Magalhães (que no começo era o mais liberal) e outros estão de acordo em impor ao Congresso o general Castello Branco, chefe militar da revolução, como presidente até [19]65. Há expectativa sobre o rumo que tomará a repressão anticomunista agora em curso. Há censura nas estações de rádio e, quem sabe, nos correios. A impressão geral que se tem é de que a esquerda subestimava a força da direita e superestimava o seu poder sindical e sua cobertura militar. Para o cinema, parece que Matraga[2] e Padre e a moça[3] continuam, não se sabe nada do Lacerda. Tem um artigo do Ely,[4] de hoje, que tem ar de quem quer fazer as pazes. Soube-se que Vidas[5] acompanhará DD, e eu, no primeiro momento, pensando que isto viesse em detrimento de Deus e o Diabo, apavorei. Diz-se, porém, que irão os dois, e eu acho ótimo.
Minhas relações pessoais com o país vão bem. Paulo e Isa são ótimos, vejo pouca gente. Estamos tentando documentário do Ita (parece que sobre o “cinema novo”), devo montar Integração[6] e depois escrever um roteiro, o mesmo de sempre. Sinto tua falta, muito, mas deve ter sido melhor assim. Escreva pra gente, duas linhas pra dizer como vão as coisas. Quando as ligações que a gente acreditava ter com uma coisa maior passam do terreno real para o virtual, o único jeito é cerrar fileiras.
Abraço, longínquo como sempre, do teu
Gustavo
P.S.: Chega o recado que você está bem e que quer saber onde está a cópia em 35 mm sem legendas de Barra. Eu já tinha te escrito que a cópia estava na Bélgica, com Gelluck, e você tinha me dito de entregar à embaixada em Bruxelas. Eu não disse nada, achando que você já tinha escrito diretamente. Em todo caso, a última instrução ao Gelluck que eu dei é que ele guardasse a cópia com ele até segunda ordem. Veja com ele. Diga ao Almeida o meu abraço e que estou escrevendo pra ele.
Glauber Rocha. Cartas ao mundo. Organização de Ivana Bentes. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 236-238.
[1] N.S.: Barravento, de 1962, foi o primeiro longa-metragem de Glauber Rocha.
[2] N.S.: A hora e a vez de Augusto Matraga, de 1966, é filme de Roberto Santos, inspirado no conto homônimo de Guimarães Rosa.
[3] N.S.: O padre e a moça, de 1965, é um filme de Joaquim Pedro de Andrade, com roteiro baseado no poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade.
[4] N.S.: Ely Azeredo é jornalista e crítico de cinema, colaborador do jornal O Globo.
[5] N.S.: Vidas secas, de 1963, é filme de Nelson Pereira dos Santos, baseado no livro homônimo de Graciliano Ramos, que também competiu no Festival de Cannes de 1964.
[6] N.S.: Referência ao filme Integração racial, de 1964, dirigido por Paulo César Saraceni.