Berna, 21 [de] fevereiro [de] 1948
Tania, minha filhinha querida, minha bonequinha,
Recebi sua carta com os retratos de Márcia[1] – um pouco atrasado porque estava em Saint-Moritz. Quando abri e vi Marcinha, meu coração se aqueceu de carinho. Nunca vi criança mais bonita! Como há muito tempo não via os retratos, no fim eu já me perguntava se não teria sido de amor que eu achara a menina a mais linda e querida do mundo. Mas quando revi os retratos, não tive a menor dúvida. Andei mostrando os retratos a todo mundo e todos riam de gosto de ver uma criaturinha tão maravilhosa. E tão esperta. Pois com quatro meses a expressão do rostinho dela é esperta demais. E com nove meses ela está toda em pezinha e caindo na gargalhada. Olhei para os retratos não sei quantas vezes. Vou ver se mando tirar uma cópia ou duas, pelo menos do maior.
Querida, você não imagina que pavor eu tenho de que a criança a nascer tenha a cara de… dona Zuza.[2] Evito de olhar para esta, com medo. Eu sei que é um sentimento feio: mas se a criança nascer parecida com a família de M[aury] tenho a impressão de que meu desgosto vai ser enorme. Ando tão impressionada com essa possibilidade que vai ver que acontece mesmo. Não me canso de olhar a carinha adorável de Márcia. Mas suponho que não adianta: sei bem que não há influências desse gênero. Mas me agrada enormemente olhar. Às vezes fico pensando em mim a chegar no Brasil com um bebê com a cara de dona Z., mostrando a criança para vocês com que vergonha! Imagino que você esteja rindo agora e eu também estou… Lembra do bebê com cara de chauffeur?[3] Pois é.
Tenho ido uma vez por mês ao médico. Ele me achou muito bem. Não me deu nenhum regime alimentar. O enjoo, que não era muito, já desapareceu totalmente. Ah, minha filhinha querida, minha alminha, há certos momentos em que a saudade dói fisicamente. Que vontade que eu tenho de te ver, de beijar tuas mãozinhas queridas. Você não me respondeu quanto a um nome para menina. Para menina é mais difícil escolher um nome. Se minha impressão é de que vem um menino, acho que preferia uma menina.
Tania, por favor, por favor, minha filhinha, cuide-se muito, não se canse. Se você soubesse quanta força eu mando para você em pensamento. Imagino que vida afobada tem sido a sua. Mas não é possível ter um método? Não é possível arranjar um jeito de tudo andar melhor? Minha querida, você nunca fala de você, você nunca diz nada propriamente de você. Fale comigo, queridinha, me escreva sobre você, me diga o que você pensa, o que você faz. Te adoro tanto.
Ontem Mariazinha me perguntou o que eu faria se ganhasse mil contos. Ela disse que eu comecei a ficar com cara de homem de negócios, uma cara meio áspera enquanto distribuía o dinheiro… Ela me deixou dar uma casa para Marcia, outra para você, outra para Elisa,[4] e vocês virem para cá, e mil coisas. Só depois ela disse rindo que o dinheiro certamente não daria. Por falar em casa: a que você estava tratando para vocês em que ponto está? Você só falou por alto. Escreva respondendo. Se você não responder às minhas perguntas, tenho que recomeçar o sistema de numeração, que é aliás ótimo.
Quanto ao apartamento para nós, não sei como será. No Brasil Maury ganha cinco contos. Ele tem cem contos no Brasil e mais nada. Um apartamento grande não se pode comprar porque os cem contos serviriam, suponho, apenas de entrada. E no Brasil ficaríamos pagando por mês o resto. Ora, com cinco contos não dá para despender mensalmente uma grande quantia. Acho que o melhor seria um apartamento qualquer, pequeno, que se pagasse logo todo ou quase todo – contanto que não se tivesse que alugar um caro, com luvas etc. – e mais tarde, se se quisesse, ou melhor, se se tivesse dinheiro, podia-se revender e comprar um melhor.
Em todo caso eu gostaria que não fosse em Copacabana, porque é um inferno viver lá, não se tem um instante de sossego, a rua fica chamando, as pessoas idem, os bares idem – é uma vida de praia, ótima para estrangeiro ou milionário ou vagabundo. Me diga sobre o livro de Elisa, não sei nada, só que o Pongetti vai editar.[5] E o concurso para o Senado quando é? Ela está forte de saúde? Não está nervosa? Realmente está sempre entrando em coisas difíceis e trabalhosas, mas no fundo tem bem razão. Só tomara que ela entre no Senado, por causa do ordenado e das férias maiores. Quanto ela ganharia?
Tania, minha irmã, Deus te abençoe, e te dê felicidade e alegrias, e bem-estar e tranquilidade, muita saúde, muita saúde, muita saúde – e muita felicidade para Marcinha querida. Cuide-se, repouse, e seja linda, e cuide de sua graça, de sua beleza e de sua elegância. Dê um grande abraço para William.[6] Ele continua bonito? E receba um grande abraço de amor e de saudade.
Sua Clarice
28 de fevereiro – Pensei que tinha mandado a carta, e não era verdade. Desculpe o atraso. Dona Zuza partiu hoje para Gênova com Maury. Ela embarcará amanhã, parece. Ela leva umas lembrancinhas para vocês. Não ligue para as cartas irritadas que escrevi de Saint-Moritz. Naturalmente ela é chata, mas eu sou muito mais. Tiramos retratos, mas, querida, eu saio sempre com cada cara, que não convém sequer mandar. Já tentei tirar mil retratos para mandar para vocês, e não é possível. Saio sempre terrível – e não é por vaidade que não mando. É para não dar a impressão de que sou um fantasminha. Quando tiro retrato com Maury, tenho que nos separar com uma tesoura, porque pelo menos no retrato pareço mãe dele.
Arquivo Clarice Lispector/ Acervo IMS
[1] N.S.: Márcia Algranti, filha de Tania.
[2] N.S.: Maria José Ferreira de Souza, conhecida como Zuza, sogra de Clarice.
[3] N.S.: Pedro nasceria no dia 10 de setembro de 1948. Na ocasião, ainda sob o efeito da anestesia, Clarice disse que a criança tinha cara de chauffeur de táxi e que era feia.
[4] N.S.: Elisa Lispector (1911-1989), irmã de Clarice.
[5] N.S.: No exílio, de Elisa Lispector, foi publicado em 1948 por Ruggero Pongetti.
[6] N.S.: William Kaufmann (1918-2008), marido de Tania.