S.l., 14 de outubro de 2001
Sussekind,
Aconteceu tanta coisa que a nossa correspondência deixou de nos entreter há quase um mês, e, pensando retomá-la, fico sem saber como começar.
Gostei do entusiasmo com que você fala do Sambódromo, e nele o acompanho, como colaborador que fui de vocês naquela obra. Infelizmente, meu amigo, dela, como arquiteto, guardo uma mágoa difícil de esquecer.
Ontem mesmo tive de dar uma entrevista sobre o Sambódromo. Perguntaram-me pelas modificações ocorridas e lembrei-me da primeira, com a obra ainda em discussão. Uma mudança que você conhece e eu recordo com a maior irritação. No meu projeto, previa que o povo, sem pagar nada, teria acesso por toda parte, inclusive à volta da passarela. Lembrava os carnavais antigos, e essa era sua principal característica. A festa é dele, que para ela se organiza o ano inteiro. Para as arquibancadas suspensas em pilotis estavam previstos acessos independentes. Mesmo assim, a proximidade do povo com o público das arquibancadas não agradava a alguns do nosso grupo. A minha ideia foi recusada e depois, com a colocação das mesas de pista, completamente afastada.
Sobre as alterações feitas após a obra ser construída, disse ao jornalista ser coisa inevitável com o passar do tempo. E concluí: a modificação mais importante a fazer, e que ninguém até hoje teve a coragem de realizar, seria a desapropriação do prédio da Brahma, que cortou o ritmo das arquibancadas, e, demolido, permitiria ampliá-las expressivamente.
Ao explicar tudo isso ao repórter, ele logo perguntou: “Se o senhor fosse convidado para projetar um novo Sambódromo, aceitaria?”. E respondi: se me permitissem manter a solução inicial, o povo à volta da pista sem pagar nada, como antigamente, eu talvez aceitasse, preservando algumas características do projeto anterior. Os camarotes iguais, os sanitários confortáveis, mas de uso comum, como se impõe numa obra dessa natureza, evitando o que vem ocorrendo para atender os requintes de uma burguesia delirante, mais interessada em se exibir do que em ver o espetáculo.
É muito delicado falar dos desfiles. Mas eu confesso não gostar de ver exaltadas coisas antigas que só lembram poder e humilhação. E me contraria um pouco o paradoxo existente – os mais pobres a dançarem para distrair os que até hoje os desprezam tanto.
Sussekind, na véspera do atentado contra as torres de Nova York, eu jantava com os amigos, e o assunto era política externa, as ameaças à Amazônia e que medidas cabia ao governo brasileiro, com os prognósticos de sempre.
Lembrei que para mim nada poderia ser previsto, que o inesperado comanda o mundo e a própria História. Parece que eu adivinhava o que ia acontecer, e no dia seguinte as torres de Nova York eram derrubadas pelos aviões suicidas.
Esse, como você sabe, Sussekind, é o assunto do momento, que o governo dos Estados Unidos aproveita para repetir, numa escala muito maior, os bombardeios que vem fazendo contra os árabes.
Será, Sussekind, que desta vez o Bush vai incendiar o mundo?
Escrevi um artigo para a Folha de S. Paulo sobre o que ocorre, com o único objetivo de declarar que tanto o atentado em Nova York como os bombardeios que há muito tempo são feitos contra os povos árabes são inegavelmente atos de terrorismo, que como tais devem ser considerados nas análises que surgem sobre o problema.
Como a própria vida, Sussekind, coisas boas e ruins aconteceram nestas últimas semanas, e, felizmente para nós, as boas prevaleceram.
O projeto do Paraná foi aprovado, e o Lerner[1] com ele se entusiasmou mais do que esperávamos. A obra praticamente se iniciou, e eu começo a imaginá-la, a espantar todo o mundo com o arrojo da estrutura que você tão bem calculou.
Até as obras de Niterói, parece, vão tomar o ritmo que há muito tempo desejamos, aflitos para ver a Catedral construída e a praça a se encher de gente para assistir a espetáculos que o teatro vai oferecer. E os prédios brancos a se harmonizarem, garantindo a unidade arquitetural tão esquecida.
Para completar, foi convite que, pelo telefone, recebi de Moscou para um projeto naquela cidade. Como nos faz bem lembrar que em três dias o elaboramos, com maquete e tudo, e receber pela internet esta resposta: “Adoramos o projeto e as formas inovadoras que apresenta!”.
Estou lendo o livro que recebi de presente sobre Aristóteles, O homem de gênio e a melancolia, onde a loucura, a bílis negra e o gênio criador se entrelaçam, apesar das limitações que as ciências da época apresentavam. Uma especulação curiosa que o atraso das ciências naqueles tempos justifica.
O resto é muito pessoal e não é a primeira vez que me acontece.
Ontem não almocei. E uma vontade de ficar sozinho, a pensar na vida, no ser humano, na fragilidade das coisas e de nós mesmos, me envolveu.
E o passado surgiu, a família, os amigos que se foram, e tudo a me parecer transitório, sem importância.
Uma grande tristeza me possuiu e emocionou. Uma tristeza mansa, quase amiga, como a me dizer que a vida é assim mesmo, que devemos nos adaptar.
Não foi um momento qualquer, Sussekind; não raro o procuro. Gosto da solidão, de me analisar um pouco. É coisa boa que só nos faz bem.
Um abraço,
Oscar
Conversa de amigos: correspondência entre Oscar Niemeyer e José Carlos Sussekind. Rio de Janeiro: Revan, 2002, pp. 201-204.
[1] N.E.: Jaime Lerner, governador do Paraná entre 1998 e 2002.