Rio de Janeiro, 18 de dezembro de 1970
Meu amor I! Vão, lê essa:
Eu sei que a hora não está para trocadilhos mas, que fazer, como diziam Lenine e Ignazio Silone?[1] Com Francis preso eu fico com a responsabilidade da cultura, com o Tarso preso eu fico também com a irresponsabilidade da incultura, com o Fortuna[2] preso sou obrigado a tomar, por ele, cubas já não tão libres, com todos presos só me restam os amigos dalém mar (a Inglaterra é dalém mar, pois não?).
Meu bom Ivan, não te tenho (gostou do tetenho?) escrito porque o estilo não ajuda, nestes momentos. Não sei o que fazer e sou obrigado a fazer mil coisas inúteis pelo simples intuito de manter o elã, não perder as estribeiras e outras peças da montaria.
Soube do que você tem feito aí, mandando brasa na imprensa da velha Albion (é velha Albion,[3] mesmo, não? Meu consultor Ibrahim não está presente) no intuito de melhorar a imagem do ame-o ou deixe-o. (O inferno verde vai ser transformado num paraíso verde-amarelo graças à Transamazônica, você sabia dessa?). O Pasquim aparentemente sífu, mas vamos ver o bicho que dá, ainda. Coisas românticas: protesto na SIP,[4] mandato de segurança et cetera. O pior é que nossos amigos continuam presos sem que a gente possa fazer nada de nada a não ser ter angústias e fingir que o fato de mandar coisas, falar a um general, procurar AB-ís, Conselhos dos Direitos da Pessoa Humana (acho que jornalista do Pasquim é considerado pessoa desumana) e outras quireras.
A hora é grave, como dizia o outro,[5] ajuntando: e sem hipérbole, terrível! Enfim, Ivan, tamos aqui, e tamos nessa. A vida não vai acabar já e esses putos não vão durar sempre, muito embora já estejam durando demais, pro meu gosto. Manda dizer algo ou alguma coisa. Eu estou aqui, ainda e por enquanto. O resto é silêncio e censura da imprensa. Beijos amigos e te desejando muito esquecimento para que possa badalar um pouco.
O Millôr
[1] N.S.: Referência ao livro Que fazer?, publicado por Vladimir Lênin em 1901, e ao político e escritor italiano membro fundador do Partido Comunista da Itália.
[2] N.S.: Millôr refere-se aos jornalistas Paulo Francis e Tarso de Castro, e ao cartunista Reginaldo José Azevedo Fortuna, conhecido como Fortuna. À exceção de Millôr Fernandes, todos os integrantes de O Pasquim foram presos durante a ditadura brasileira.
[3] N.S.: Forma poética de referência à Grã-Bretanha ou à Inglaterra, em particular.
[4] N.S.: Sociedade Interamericana de Imprensa.
[5] N.S.: Possível alusão ao poema “Hora grave”, de Rainer Maria-Rilke: “Quem chora agora em algum lugar do mundo,/ sem razão chora mundo,/ chora por mim. […]