Senhor marechal:

Amigos cuja opinião prezo e respeito criticaram-me severamente pelo fato de lhe ter dito, na primeira epístola, que acreditava estar o senhor tão interessado quanto eu na felicidade da pátria, embora ainda lhe faltasse compreender que suas altas funções atuais nunca seriam exercidas em plenitude se não mantivesse diálogo vivo e constante com todas as camadas de nosso povo, inclusive aquelas que se colocam em oposição a seu modo de ser ou de agir. No entender desses meus amigos o senhor estaria apenas interessado no exercício do poder, que pratica com exagerada autossuficiência, para enquadrar-nos a todos nos limites rígidos e estreitos de suas concepções pessoais, fruto de uma formação totalitária.

Creio que essa conclusão é muito simplista e, para mim, já chegou o momento de estudar sem paixão, com frieza analítica, o que foi o golpe militar e político que o levou ao cargo que hoje ocupa. O processo da revolução brasileira, dessa luta de nosso povo pela sua independência efetiva e pela melhor distribuição da riqueza nacional, é um todo, um complexo dinâmico e inevitável, que não será impedido pelo golpe de abril ou por qualquer outro movimento semelhante que as classes dominantes venham a tentar no futuro. Ninguém poderá dizer quanto tempo durará o episódio político atual, inserido à força no quadro do processo em desenvolvimento. Mas as transformações que já se operaram nele, quase que a partir do dia seguinte ao seu início, demonstram claramente não haver unanimidade, em terreno ideológico, das forças que o compuseram.

Dos contatos que depois do golpe mantive com oficiais do Exército, ao longo dos IPMs[1] em que me vi envolvido, cheguei à conclusão de que seria errado acusar as Forças Armadas de terem agido conscientemente a serviço de interesses antinacionais. Vários deles são pessoas de boa-fé, convencidos de que o país estava à beira do caos e prestes a ser dominado pelo que chamam de comunismo internacional. Mas basta trocar algumas palavras com esses oficiais para constatar que desconhecem os mais elementares verbetes do vocabulário político e agem em função de preconceitos tão cegos e primários que sua visão dos problemas sociais é anacrônica e deformada.

Não se poderá acusá-las, também, de terem agido em função de um princípio de casta. Mas é inegável que nossas Forças Armadas, apesar de serem amostra estatística das qualidades e das falhas do povo brasileiro, entendem ser necessário botar um pouco de ordem na vida política nacional, que os paisanos perturbavam, submetendo-a à orientação de um chefe militar severo e disciplinador . Com exceção de um percentual mínimo de radicais, seja de direita ou de esquerda, o grosso das Forças Armadas é constituído de elementos sem clara definição ideológica, vivendo uma espécie de alienação política limitada na superfície pelos conceitos de ordem e respeito hierárquico e motivada, ainda que subjetivamente, por algo também indefinido a que chamam tradições cristãs, ocidentais e democráticas.

Para essa maioria, que diríamos centrista, o senhor é o chefe ideal, o militar que botará ordem na vida política brasileira. Sua figura de preceptor vitoriano, usando a palmatória ou a vara de marmelo para corrigir os “excessos” do Legislativo e dos partidos políticos, é garantia de tranquilidade e de ordem na casa do Brasil. Os termos de seu pronunciamento do dia 30 de setembro, a respeito das eleições que três dias depois se realizariam em onze estados, dão a medida de sua adequação a essa imagem. O senhor nem se deu ao cuidado de mascarar sua magnanimidade, deixando bem claro que as eleições seriam como que uma dádiva da “revolução”, por ela já se sentir segura e forte.

Lá pelas tantas, com a mais surpreendente candura, o senhor afirma que “…o governo não interveio na escolha dos partidos. Adotou, assim, uma atitude que, não sendo de omissão ou de desinteresse, representa o acatamento e o respeito às organizações partidárias locais, a cuja responsabilidade ficou a indicação dos candidatos”. Assim, não, marechal… Será que o senhor já se esqueceu de quem inspirou a Lei das Inelegibilidades? Será que está alheio às pressões que se exerceram sobre os partidos, os Tribunais Eleitorais, sobre a população brasileira, em suma, para que fossem afastados da raia todos aqueles nomes que, de uma ou de outra maneira, pudessem representar qualquer ameaça à estabilidade da “máquina revolucionária”?

Não é preciso perder tempo com estas dúvidas e ressalvas, pois o senhor próprio afirma, em outra passagem de seu pronunciamento, estarem enganados “… os que porventura imaginem poder transformar-se em centro de apoio ou estímulo à subversão ou à corrupção, à sombra de um resultado eleitoral. Nesse particular, podem estar tranquilos os revolucionários: jamais admitiremos que qualquer parcela de poder seja usada para fins inconfessáveis e capazes de comprometer a continuidade da revolução”.

Aí está dito tudo. Seu esclarecimento à nação, amplamente divulgado pelo rádio, pela televisão e pela imprensa, poderia limitar-se a essa passagem, com economia de tempo e de trabalho. E talvez nem fosse necessário, pois basta examinar a ficha de cada um dos trinta candidatos para descobrir que, com duas ou três exceções, se tanto, todos resultam de um acordo tácito entre as cúpulas partidárias e o governo federal: brinquem à vontade, meninos, mas não perturbem o sono de sua excelência.

Mas as eleições se realizaram, com calma e índice relativamente baixo de abstenções. A despeito do golpe e de serem quase todos os candidatos uns cadáveres ambulantes da velha política, nosso povo está com ganas de votar, de tirar o país da apatia aborrecida em que se encontra.

Os militares centristas podem ficar satisfeitos: a vara de marmelo do marechal-preceptor, escondida atrás da porta, funcionou e funcionou bem. Em quase todos os onze estados não se submeteu a “revolução” a um teste perigoso. A disputa do poder não se fez pelo crivo de posições ideológicas, mas pela capacidade de barganha. Em alguns deles, o PTB e a UDN se uniram contra o PSD; em outros, PSD e UDN contra o PTB; em outros, ainda, as combinações assumiram característica mais extravagante, reunindo em torno de um candidato forças que deveriam ser violentamente contrárias, pelas suas origens e pelo seu programa de ação. Mas a verdade é que vale tudo para chegar ao poder, ou a uma fatia do poder: a manobra, o conchavo, o arreglo.

Em dois estados, Guanabara e Minas Gerais, foi tremenda a derrota imposta à situação. O PSD e o PTB, unidos a partidos minoritários e a forças não arregimentadas, deram o que se chama uma lavada no Carlinhos e no Mr. Magoo.[2] Os militares centristas, tendo compreendido que essas vitórias esmagadoras eram parcialmente fruto de maquinações do marechal-preceptor e de sua éminence grise,[3] o general Golbery, não se abafaram. Muitos deles, aliás, votaram nos candidatos vencedores. Mas os cinco por cento ou pouco mais – dos militares entregues ao radicalismo de direita botaram a boca no mundo: a revolução estava em agonia, os corruptos e subversivos voltariam ao poder. E ameaçaram virar a mesa. Foram horas de tensão as que o Brasil viveu entre 5 e 7 do corrente. O senhor trabalhou bem, marechal. Os direitistas espumaram, mas quem colhe os resultados, os dividendos de uma aparente derrota é o senhor! A promessa de medidas cerceadoras da liberdade dos cassados aplacará os meninos barulhentos, enquadrará as cúpulas partidárias e dará maior área de manobra ao seu governo. As eleições de outubro foram o carrapaticida que tirou a UDN do couro dos “revolucionários” no poder e o senhor, agora, chamará às falas o PSD.

Enquanto as bases de alguns partidos ditos populares não se entenderem, enquanto as cúpulas mantiverem nas mãos o comando das máquinas e aparelhos, será fácil negociar com elas, como o senhor e o general Golbery do Couto e Silva bem sabem. Realismo político, para essas cúpulas, significa continuar na crista da onda, sem perder tempo com filigranas ideológicas. O senhor tinha certeza disso. Os “revolucionários” podem ficar tranquilos e satisfeitos: as eleições de 3 de outubro não comprometeram a continuidade da “revolução”. Muito pelo contrário, facilitaram o caminho para o grande lance que ela prepara: eleições indiretas para a presidência da República, em 1966, mantendo no cargo o marechal-preceptor ou substituindo-o por outro salvador da pátria.

É evidente que as cúpulas partidárias não aceitarão essa manobra tão facilmente quanto o fizeram no caso das eleições estaduais. Mas se as Forças Armadas estiverem convencidas de que esse processo é necessário, seus argumentos sutis serão irresponsáveis.

Contribuirá isso para a felicidade nacional, que parece ser a motivação de tantos militares de boa-fé? A resposta deve ser negativa, marechal, porque a eliminação ou a temporária paralisação das instituições democráticas não trazem felicidade a ninguém, nem mesmo àqueles que agem com o direito da força. A história contemporânea está repleta de exemplos esclarecedores.

Em que deveria consistir a tarefa das Forças Armadas? Permito-me recomendar-lhe, marechal, a leitura do livro História militar do Brasil, do general Nelson Werneck Sodré – um dos oficiais mais competentes, pela sua cultura sociológica e política, que nosso Exército já teve até hoje – onde, na página 406, encontraremos o seguinte trecho exemplar: “Para que o Brasil se realize como nação que é necessário e, em consequência, em que consiste a tarefa das Forças Armadas? A resposta, em termos sumários, poderia ser: assegurar as instituições democráticas e a livre expansão econômica nacional. Distinguindo o caráter fundamental que existe na íntima associação entre os dois termos: assegurar as instituições democráticas e assegurar a livre expansão econômica nacional. Isso nos permite entender como escapa, e distorce, a tarefa das Forças Armadas não só a separação entre os dois termos, que guardam uma relação dialética, como, e principalmente, a deformação em qualquer deles. Daí o caráter antinacional de um desenvolvimento, por exemplo, que assenta, finalisticamente, na contribuição do capital estrangeiro, aqui situado como capital imperialista, uma vez que, pela sua essência, esse capital é antinacional, no sentido de que desajuda a expansão econômica nacional”.

O senhor talvez não aceite, por mera questão de preconceito, essa formulação apresentada pelo general Werneck Sodré. A palavra imperialista, para o senhor, somente existe no vocabulário de subversivos. Mas eu poderia recomendar-lhe também a leitura de um número recente de The Economist (semana de 25 de setembro a 1 de outubro), onde um de seus redatores principais, Mr. Norman Macrae, numa grande reportagem sobre a América Latina, tece comentários (de um modo geral favoráveis) sobre o planejamento econômico de Mr. Campos e sobre o “governo de tecnocratas” que hoje, no seu entender, dirige os destinos da Brasil.

Pois bem: nessa longa reportagem, claramente hostil ao governo deposto pelo golpe de abril, Mr. Macrae diz que saiu de um debate com Mr. Campos e seus assessores convencido de que as teorias desses homens (“entusiasticamente aprovadas pelos competentes conselheiros econômicos da Embaixada dos Estados Unidos…”) “causariam à maioria de ministros das finanças de países europeus a sensação de serem produto do cérebro de cientistas loucos vindos de outro planeta”. Quando o autor se despede de Mr. Campos e ele lhe pede que transmita suas lembranças a Nicholas Kaldor, economista britânico, seu comentário é igualmente sarcástico: “Compreendi, então, que aquele era um grupo de Nicholas Kaldors, um grupo de professores cheio de dinamismo, encantado com a possibilidade de ter um país de 80 milhões de habitantes por laboratório para as suas experiências, embora seguindo caminhos diametralmente opostos àqueles que o próprio Kaldor aprovaria”.

Ao fim de seu capítulo sobre o Brasil, Mr. Macrae diz que, se a experiência de Roberto Campos não der certo, “duas alternativas se apresentarão: ou o mundo financeiro e comercial muda completamente suas linhas de ação, permitindo que países com grande capacidade de desenvolvimento interno, como o Brasil, possam alcançá-lo de fato, com a garantia de preço e de mercado para seus produtos básicos (hipótese que o autor favorece), ou esses países oscilarão entre o semieficiente populismo de Kubitschek e o ineficiente populismo de Goulart, com algumas ditaduras militares de direita entre uma fase e outra”.

Pois bem, marechal: de que maneira levaremos os grandes centros financeiros e comerciais da mundo a revisar sua política em relação a nós se estivermos seguindo cegamente uma política de dependência cada vez maior de seus caprichos, reconhecidos em toda parte como lesivos aos nossos interesses? O senhor me desculpe, mas é preciso empregar aqui outra palavra que certamente terá conotações subversivas: espoliação. Sim, a espoliação que resulta de exportarmos cada vez mais volume em troca de cada vez menos divisas. A espoliação verificada toda vez que fazemos concessões ao capitalismo predatório, seja no terreno de minérios, seja no campo hidrelétrico. A espoliação encontrada no progressivo controle estrangeiro de tantas indústrias vitais para a própria segurança nacional, como a farmacêutica, por exemplo.

O senhor e o general Golbery podem estar convencidos de que a felicidade nacional repousa nas conclusões e diretivas emanadas do Pentágono e do Departamento de Estado, que são todas no sentido de nos integrarmos num planejamento estratégico global, com vistas a um possível conflito bélico leste-oeste. Não se esqueça, marechal, de que foi o pretexto anticomunista que levou Hitler, Mussolini, Franco e Salazar ao poder. Hitler e Mussolini já tiveram o fim que mereciam. Franco e Salazar continuam, anacrônicos, estagnados e estagnantes, mantendo seus países sob tacão de ferro, despreparados para o jogo democrático. Não é por menos que Portugal e Espanha, numa Europa em pleno desenvolvimento (tanto no setor capitalista como no socialista), continuem sendo nações que apresentam baixos índices de renda per capita, de consumo de calorias, de produção de aço e os mais elevados de doenças, de mortalidade infantil e de analfabetismo.

A história irá julgar aqueles que, como o senhor, tiveram nas mãos uma grande parcela de responsabilidade pelo encaminhamento (ou desencaminhamento) dos interesses de todo um povo. Neste episódio que hoje vivemos, e que muda de feição com grande rapidez, ainda há muitas possibilidades para o estabelecimento do diálogo a que de início me referi. Ainda há possibilidade de o senhor deixar de lado a vara de marmelo e os preconceitos e, depois de inspirar-se no próprio Caxias, que foi o homem da anistia, estender as mãos aos verdadeiros representantes do povo brasileiro para esse trabalho de recuperação nacional que não pode ser adiado nem mais um minuto e requer o devotamento de todos, acima de paixões e rancores.

Termino nesta segunda epístola citando mais um trecho do livro de Nelson Werneck Sodré, exatamente as linhas com que encerra seu magistral estudo: “Haverá uma hierarquia mais sólida, uma ordem mais estável, uma subordinação mais consciente, na medida em que as Forças Armadas completem a sua transformação em instituições nacionais. Com a aceitação plena de que só é nacional o que é popular”.

Atenciosamente,

Ênio Silveira

Revista Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, ano 1, n. 4, set. 1965, pp. 3-8.

[1]  N.S.: Inquéritos Policiais Militares.

[2] N.S.: Referência a Carlos Lacerda e, provavelmente, a José Magalhães Pinto, pela semelhança do governador mineiro com o personagem do desenho Mr. Magoo.

[3] N.S.: Em português, significa eminência parda, termo que qualifica um assessor ou conselheiro que atua na política de forma não-oficial.