[São Paulo, fevereiro de 1923]

Querido Manuel,

Não me condenes antes que me explique.

Depois perdoarás.

Foi assim. Desde que cheguei ao Rio disse aos amigos: dois dias de carnaval serão meus. Quero estar livre e só. Para gozar e observar. Na segunda-feira, passarei o dia com Manuel, em Petrópolis.  Voltarei à noite para ver os meus afamados cordões.

Meu Manuel… Carnaval!… Perdi o trem, perdi a vergonha, perdi a energia… Perdi tudo. Menos minha faculdade de gozar, de delirar… Fui ordinaríssimo. Além do mais: uma aventura curiosíssima. Desculpa contar-te toda esta pornografia. Mas… Que delícia, Manuel, o carnaval do Rio! Que delícia, principalmente, meu carnaval! Se estivesses aqui, a meu lado, vendo-me o sorriso camarada, meio envergonhado, meio safado com que te escrevo: ririas. Ririas cheio de amizade e de perdão.

Nada me faz esquecer-te. Mas quem falou em esquecimentos e abandonos? Nem tu, tenho certeza disso. Foi leviandade. Criançada, nada mais. Meu cérebro acanhado, brumoso de paulista, por mais que se iluminasse em desvarios, em prodigalidades de sons, luzes, cores, perfumes, pândegas, alegria, que sei lá!, nunca seria capaz de imaginar um carnaval carioca, antes de vê-lo. Foi o que se deu. Imaginei-o paulistamente. Havia um quê de neblina, de ordem, de aristocracia nesse delírio imaginado por mim. Eis que sábado, às 13 horas, desemboco na Avenida. Santo Deus! Será possível!…

Sabes: fiquei enojado. Foi um choque terrível. Tanta vulgaridade. Tanta gritaria. Tanto, tantíssimo ridículo. Acreditei não suportar um dia a funçanata chula, bunda e tupinambá. Cafraria vilíssima, dissaborida. Última análise: “Estupidez”!

Assim julguei depois de dez minutos que não ficaria meia hora na cidade.

Mas, por isso talvez que tanto tenho sofrido dos julgamentos levianos, jurei para mim olhar sempre as coisas com amor e procurar compreendê-las antes de as julgar. Comecei a observar. Comecei a compreender. Uma conversa iluminava-me agora sobre uma ridícula baiana que há pouco vira. A pobreza de uns explicava-me a brincadeira de outros.

Admirei repentinamente o legítimo carnavalesco, o carnavalesco carioca, o que é só carnavalesco, pula e canta e dança quatro dias sem parar. Vi que era um puro! Isso me entonteceu e me extasiou. O carnavalesco legítimo, Manuel, é um puro. Nem lascivo, nem sensual. Nada disso. Canta e dança. Segui um deles uma hora talvez. Um samba num café. Entrei. Outra hora se gastou.

Manuel: sem comprar um lança-perfume, uma rodela de confete, um rolo de serpentina, diverti-me 4 noites inteiras e o que dos dias me sobrou do sono merecido.

E aí está porque não fui visitar-te.

Estou perdoado.

Sei que me perdoarás principalmente quando souberes que até parentes, moradores da rua Dona Mariana, deixei de visitar.

Principalmente quando souberes que tendo perdido tantas coisas no carnaval, não perdi a máquina fotográfica, antes cinematográfica de meu subconsciente. Aqui estou na vida quotidiana. Pois não é que ontem começaram a se revelar fotografias e fotografias dentro de mim! Pois não é que, no écran das folhas brancas, começou a se desenrolar o filme moderníssimo dum poema!

“Carnaval Carioca”[1]. Está saindo. Parece mesmo que estou satisfeito com ele. Será mais ou menos longo. E muito meu. Há um trechinho sobre o destino do poeta, descrevo a dona de minha aventura, rezo, canto, grito… O diabo! O menos jeune fille dos meus poemas. Quando estiver pronto, receberás cópia.

Me basta de carnaval.

Quero agora dizer-te quanto me agradou o carinho e a verdade do teu artigo. És muito bom e muito amigo. Muito obrigado. ­­­– Nem podes imaginar como é grande este “muito obrigado” porque não imaginas o benefício que me fazes. Eu, diretor (ex, porque já chegou o homem que eu substituía) do Conservatório, crítico gritador, homem corajoso, forte… Pura máscara! Puro carnaval! No fundo sou uma criança. Infantil. Titubeio. Duvido. Se não tivesse raiva de mim mesmo, creio que choraria.

O que vocês, rapazes do Rio, fizeram por mim, é coisa que nunca pagarei.

Trago-te comigo.

Até breve.

Até junho ver-nos-emos no Rio? Ou em Petrópolis se ainda lá estiveres.

Dessa vez nenhum carnaval me fará roer a corda.

Até breve, mais uma vez.

MÁRIO

[1] “Carnaval…/ Minha frieza de paulista/ Policiamentos interiores, /Temores da exceção… /E o excesso goitacá pardo selvagem! /Cafrarias desabaladas /Ruínas de linhas puras /Um negro dois brancos três mulatos, despudores… /O animal desembesta aos botes pinotes desengonços /No heroísmo do prazer sem máscaras supremo natural” são alguns dos versos do poema “Carnaval Carioca”, dedicado a Manuel Bandeira, publicado em Clã do Jabuti (1927).