Monteiro Lobato e Godofredo Rangel desenvolveram uma intimidade singular por meio da correspondência. Visceralmente literatos, cultivaram discussões epistolares em torno de obras, de tendências estéticas e da vida ao longo de quarenta anos. As cartas, que, como esta de Lobato, na maioria das vezes tratam de literatura, seriam publicadas em A barca de Gleyre (1944).

São Paulo, 15 de novembro de 1904

É cheio do passado que te escrevo. Imagina que fui ao Rink (coisa que não conheces: patinação) e lá encontrei numa roda de quatro a moça mais bela que a Natureza ainda produziu. Bela, fina, elegante… Estes adjetivos já não dizem nada por cau­sa dos abusos do Macuco. Sabe o que é o belo, Rangel? […]

Diferentemente dos temas predominantemente literários de que se ocupou Monteiro Lobato na sua correspondência com o amigo Godofredo Rangel, nesta carta ele fala sobre a precariedade de sua saúde e de sua bem-humorada ideia da morte, que chegaria menos de duas semanas depois.

S.l., véspera de São João, [23 de junho de] 1948

Rangel,

Chegou afinal o dia de te escrever, e vai a lápis, porque a pena me sai mal. Ainda estou com uma perturbação na vista. Uma pertur­bação que se vai deslocando do meu campo visual, e que num mês deve estar desaparecida. Só então voltarei a ler correntemente. Tenho estado, todo este tempo, privado de […]

Monteiro Lobato casou-se com Maria Pureza da Natividade, que ele chamava de Purezinha, em 28 de março de 1908 e com ela teve quatro filhos: Marta, Edgar, Guilherme e Rute. Os dois filhos homens morreram ainda na juventude, como mostra esta carta escrita depois da morte do segundo.

São Paulo, 20 de fevereiro de 1943

Rangel,

Pois é. Perdi o meu segundo filho, o Edgard, um menino de ouro, tal qual o Guilherme. Impossível filhos melhores que os meus, e talvez por isso foram chamados tão cedo. O Guilherme se foi aos 24 anos e agora o Edgard com 31. Ele nunca se esqueceu da primeira carta rece­bida pelo correio, […]

Editado em livro em 1920, Vida ociosa, de Godofredo Rangel, teve uma versão anterior, ligeiramente diversa, publicada na Revista do Brasil entre maio de 1917 e janeiro de 1918. Esta carta, escrita depois da leitura do capítulo final, mostra o entusiasmo de Lobato pela obra.

Fazenda [São Paulo],[1] 6 de julho de 1917

Rangel,

Acabo de ler o último capítulo de Vida ociosa. Se algum tranca me disser que não és o sucessor de Machado de Assis, leva bofetada nas ventas. Ninguém é juiz em matéria própria. Teu juízo sobre a Vida é suspeito, não tem valor legal nenhum. Os outros é que têm de dizer, como eu, […]

Editado em livro em 1920, Vida ociosa, de Godofredo Rangel, teve uma versão anterior, ligeiramente diversa, publicada na Revista do Brasil, por sugestão de Monteiro Lobato que, nesta carta, revela total compreensão do estilo do amigo e do valor do livro.

Fazenda [São Paulo],[1] 6 de julho de 1917

Rangel,

Retiro tudo quanto disse a propósito do teu estilo, em tantas cartas anteriores. Em vez de mudar alguma coisa, podar, concentrar, fazer, em suma, o que sugeri, não deves fazer coisíssima nenhuma. Estás sedimentado definitivamente e lindo. Encantou-me tanto a Vida ociosa que me envergonhei de todas as minhas velhas sugestões. Compreendi agora. Você […]