por Heleine Fernandes*
“Tive a quem puxar”. Ouvi diversas vezes esse dito popular em minha infância. Depois de muito tempo, tenho a alegria de reencontrar com ele no livro Cartas para minha avó, de Djamila Ribeiro (Companhia das Letras, 2021). Lembro de sentir um misto de orgulho e espanto de autodescoberta quando alguém dizia em alto e bom som que eu tinha a quem puxar. Esse dito, que reverbera na escrita vocal de Djamila e que é uma espécie de síntese do seu livro, gravou em minha memória um ensinamento profundo do qual ainda não tinha me dado conta: o de que não estou só. Não sou uma estranha no ninho; sou semelhante, pois tenho a quem puxar. A quem puxo me puxa para dentro de uma roda ancestral que é a narrativa de parentes que pertencem.
Para descendentes de africanos na diáspora, o que seria o natural pertencimento a um grupo de parentes se revela uma situação de exceção. A colonização europeia, para transformar os nativos do continente africano em mercadoria, destruiu laços familiares, separou casais, mãe e pais de seus filhos, e produziu a comunidade dos sem parentes e dos sem história, como formula Achille Mbembe. No sentido contrário a essa violência desumanizadora, Djamila Ribeiro narra a história de sua linhagem familiar através de cartas endereçadas a sua avó.
Uma dimensão coletiva e povoada de parentes costura as cartas à avó Antônia, que se encantou quando a autora tinha apenas 12 anos. A escrita endereçada à avó benzedeira, que conhecia o poder curativo das palavras, é a via encontrada pela neta para contar a sua própria história de vida. É também o desdobramento das histórias de vida dos seus familiares, com especial destaque para as mulheres: a avó Antônia, a mãe Erani, a filha Thulane. O pai Joaquim José é igualmente um personagem importante na narrativa, muito ligado à consciência racial, à militância de esquerda e à valorização dos estudos. Assim, ao contar a história de sua vida, Djamila conta a história de muitas pessoas, inclusive a história de pessoas com as quais não tem laços consanguíneos, mas que se identificam com as experiências de uma mulher negra no mundo, alvo do racismo e do machismo desde a infância. Como coloca Conceição Evaristo, na bela orelha que introduz a escrevivência de Djamila, “muitas lembranças extrapolam a memória pessoal da autora para se constituírem como narrativas de experiências e vivências de várias famílias negras”.
Me identifiquei com os momentos áridos da narrativa de vida da escritora, mas também com os momentos de frescor, em que saberes negros ancestrais circulavam pela página como uma lufada de ar em dias quentes: das ervas como remédio; da busca de conforto no mar, em momentos difíceis; da importância de se respeitar os mais velhos; de compreender o que não se vê e o que não se fala. Neste sentido, é muito bonita a sintonia entre mulheres negras expressa pelos olhos cúmplices, que pontuam diversas cartas. Olhos atentos protegem e traçam estratégias para tornar a vida de mulheres negras possível. Aliás, antes de lermos as cartas, somos convocadas/os a ler o olhar doce e firme de vó Antônia, que nos encara desde uma fotografia antiga, trajada e adornada como uma Iyá do candomblé. É sob esse olhar de proteção e de altivez que a narrativa das cartas se desenvolve. Vó Antônia, o primeiro ser mágico de que Djamila tem memória, está no começo de tudo:
Se as injustiças do mundo me deixam indignada, foi porque olhos altivos negros da cor da noite me acolheram antes que eu pudesse aprender as palavras, antes que eu soubesse o que era feminismo ou luta política. (…) A força dos olhares cúmplices seus e de minha mãe, mesmo que menos frequentes do que desejávamos, foi fundamental para me ensinar a ver o mundo pela perspectiva da mulher que enfrenta visceralmente o mundo. Ao ver seus olhos na foto, entendi de onde herdei os meus.
Trazer a memória das mulheres de sua linhagem é um modo de reconhecer-se pertencente a uma narrativa maior de luta, coragem e inteligência, responsável pela sobrevivência de muitos. Desse modo, a escrita se revela uma ferramenta de acesso e elaboração de memórias, servindo como tecnologia de autoconhecimento. Como um espelho d´água, dá a possibilidade de mirar-se através dos olhos de suas/seus ancestrais, reconhecer o valor de suas origens e de sua trajetória de vida. Essa mirada no abẹ̀bẹ̀, leque espelhado empunhado pelas orixás das águas, Yemọjá e Ọ̀ṣun, possibilita à autora humanizar-se e humanizar toda a sua linhagem. Logo no começo do livro descobrimos que as cartas são oferendadas a essas orixás femininas, arquétipos da maternidade no panteão Yorùbá.
Vó Antônia está na origem, inclusive, da escrita de sua neta: “Vó, poucas pessoas sabem que gosto de escrever contos e poesias. Passei a escrever após a sua morte, quando tinha treze anos”. Assim, a morte e a vida revelam sua misteriosa complementariedade ao longo da narrativa autobiográfica de Djamila Ribeiro, que é pontuada por outras perdas prematuras, ainda na juventude: sua mãe e, logo em seguida, seu pai, ambos vitimados pelo câncer. Pelas cartas, a distância entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos é encurtada, dando a quem lê a sensação de permeabilidade entre essas duas dimensões.
Isso me faz lembrar do interessante conceito da artista visual Aline Motta, para quem a memória das/os ancestrais é matéria nobre de trabalho. Ela fala da “máquina Kalunga”, que corresponde às técnicas artísticas utilizadas para tornar o invisível visível, para conectar o mundo dos vivos ao mundo submerso no mistério daqueles que se encantaram abaixo da linha da Kalunga. No cosmograma Bakongo, síntese filosófica dos povos do Congo-Angola, o ciclo completo de um dia se assemelha ao ciclo de vida e morte de todos os seres. A Kalunga é o nome dado à linha do horizonte, uma linha d´água que separa o dia da noite, o mundo dos vivos do mundo dos mortos, o visível do invisível. Todo dia, cada ser vivente atravessa a linha da Kalunga duas vezes, quando emerge do e quando submerge no mistério das águas profundas. Assim, me apropriando do conceito de Aline Motta, ouso dizer que a carta é utilizada por Djamila Ribeiro como “máquina Kalunga”, como modo de transitar pelo mistério.
Ousando mais ainda, afirmo que outras escritoras negras da diáspora utilizaram a carta como “máquina Kalunga”. A primeira que me ocorre é a escritora cubana Teresa Cárdenas que em Cartas para a minha mãe (1997) constrói uma narrativa epistolar na qual uma jovem menina escreve cartas para conversar com a mãe recém-falecida para lidar com o luto e com a aspereza de sua nova vida. O livro de Djamila, desde o título, faz uma citação direta a essa obra. O clássico de Alice Walker, A cor púrpura (1982), é também um caso de carta sendo utilizada como máquina Kalunga. Neste romance, Celie é uma adolescente vítima do pior que o machismo e o racismo podem reservar a uma menina negra. A narradora então escreve cartas a Deus numa tentativa de sobreviver à brutalidade de suas condições de vida. Em Carta a minha filha (2008), Maya Angelou também se apropria do gênero carta para fazer contato com uma filha imaginária, já nascida e ainda não nascida, que é a metonímia de todas as mulheres do mundo. Na tradução para o português, o livro é definido pela autora como uma oferenda.
A carta, como um gênero que se lança ao encontro de quem está distante, ganha um significado especial quando apropriada por escritoras negras afro-diaspóricas que, através da escrita, acabam por criar uma rede de semelhanças que ajuda a romper com a sensação de solidão.
Djamila Ribeiro reivindica a sua humanização e a dos seus nas cartas à avó Antônia, recusando o lugar previsto pelo racismo e pelo machismo para mulheres negras: o de que devem ser fortes e, por isso, sufocar suas emoções e sensibilidade. “No enterro de minha mãe, a mãe de uma amiga me disse: ‘Não chore, você precisa ser forte pelos seus irmãos’. Sei que ela não falou por mal, mas quão cruel é dizer para uma jovem de vinte anos que ela não pode chorar a morte de sua mãe?”. Como não lembrar do ensaio de bell hooks, “Vivendo de amor”, em que ela narra a história de Frederick Douglass, que não conseguiu chorar a morte de sua mãe? “Depoimentos de escravos revelam que sua sobrevivência estava muitas vezes determinada por sua capacidade de reprimir as emoções (…) Num contexto onde os negros nunca podiam prever quanto tempo estariam juntos, que forma o amor tomaria? Praticar o amor nesse contexto poderia tornar uma pessoa vulnerável a um sofrimento insuportável”, analisa bell hooks. Infelizmente, muitas crianças negras ainda são ensinadas a lidar com os desafios da vida reprimindo seus sentimentos. Em Cartas para minha avó, a escrita é espaço de humanização e de liberdade; veio de rio por onde desaguar águas represadas, diluir mágoas e romper com ciclos de violência vividos por toda uma linhagem. É através da escrita que a escritora pode, finalmente, tomar contato com sua fragilidade, com o choro, fazer o luto das mortes de sua mãe, pai e avó, reconhecendo o tanto de amor que recebeu deles. “A verdade é que você nunca deixou de cuidar de mim ou enviar quem cuidasse. As mulheres negras salvaram minha vida”.
Cartas para minha avó é um livro sobre amor entre pessoas negras e sobre o trabalho de cura de feridas emocionais que restringem nossa capacidade de amar.