Arquivos de cartas sugerem os relevos da caligrafia e a dificuldade, maior ou menor, de decifrá-las. Lidar com o desenho das letras e as páginas usualmente amareladas, preenchidas por tinta de caneta, é um dos desafios de entrar em um mundo de feições idiossincráticas, apresentado pelo contato com o traço do autor da correspondência. Em meio a uma época de caracteres padronizados em fontes e contato com telas iluminadas de feição semelhante, a carta abre a fresta para outra cena, formada por texturas e odores, mas sobretudo construída por um tempo distinto. Entre o escrever e o digitar, o manejar a caneta e o teclado, o caminho de alguns centímetros do mouse até parte da mesa e o caminhar até os correios, há um trato e uma trajetória diversa das palavras.
Quando passei a ler as cartas de Sobral Pinto, esperava lidar com algo próximo à experiência descrita algumas linhas acima. A imagem do arquivo antes da sua presença física, construída nos momentos em que a ideia antecede o encontro, era de inúmeras folhas de papel amarelado, preenchidas com a bem desenhada caligrafia do velho jurista, que trairia uma das marcas de uma outra educação, repleta dos desejos de grandeza das escolas de elite ou das faculdades de Direito. Conheci inicialmente Sobral pelos livros de história e pelo anedotário do mundo jurídico, mas à época já tinha alguma familiaridade com seus textos e gravações icônicas, de discursos e entrevistas. Trazia, portanto, certa ideia da sua voz, ao menos daquela mais conhecida e divulgada. Restava saber se a correspondência revelaria outro Sobral, ou emularia sua retórica grandiloquente mais conhecida.
No meio do caminho não estava, contudo, qualquer caligrafia, mas um emaranhado de páginas datilografadas. Sobral Pinto não escrevia as cartas com o próprio punho, mas as ditava para sua secretária, Ceci, responsável por transcrever as falas munida de uma máquina de escrever. Acostumado a controlar com minhas próprias mãos a composição de todos os meus textos, suas idas e vindas, soa estranha a imagem de alguém que os constrói em voz alta, ditando-os para outro. As frequentes correções a lápis revelam uma leitura e revisão posterior do próprio autor das cartas, mas, dada a influência das primeiras versões e o enorme volume da correspondência, o hábito sem dúvida condiciona e revela muito do que está lá.
Desenham-se, já de início, os cenários. As cartas eram ditadas em seus locais de trabalho, ou seja, no escritório de advocacia, na Rua Debret, ou no escritório domiciliar, na Rua Pereira da Silva, em Laranjeiras. Mesmo quando em casa, a presença de uma funcionária, ainda que de longa data, conferia inegável formalidade à composição da correspondência, exigindo, em uma imagem não necessariamente metafórica, o uso do terno e gravata mesmo para as cartas mais pessoais e íntimas. Talvez não seja um excesso interpretativo ver aí certa indistinção entre o público e o privado, entre a casa e o trabalho, de forma que é difícil separar, mesmo na correspondência pessoal, o advogado das grandes causas do amigo, irmão ou pai. De certo modo, Sobral Pinto é prisioneiro da sua identidade pública, da importância, reconhecida por seus contemporâneos, que tanto passou por seus grandes feitos como por um renitente esforço de construção de uma persona heroica.
A composição das cartas também revela como tal cenário era atravessado por hierarquias sociais, explícitas quando se tem alguém para mediar e organizar algo tão pessoal. Ceci, a secretária, é um personagem ausente na construção do discurso público de Sobral, mas que o tornava, de um modo bem explícito, possível. É difícil evitar a ideia de que as cartas seriam distintas, em número e feição, se compostas de outro modo, que passasse pelo esforço do próprio jurista de digitá-las. Parte da mitologia em torno de Sobral enfatiza sua escolha das causas jurídicas e políticas a partir de um ideal de justiça, que desconsiderava o quanto ele poderia ganhar financeiramente com elas. Há, de fato, muitos exemplos da recusa de honorários, por razões que vão desde os parcos recursos dos clientes até a garantia de que o advogado não se beneficiaria da defesa de adversários políticos, como os comunistas. Raro personagem de algumas cartas pessoais, Ceci, contudo, revela parte do mundo frequentado pelo autor das cartas. A construção do mito foi uma tarefa de muitas mãos, nem todas evidentes.
O tom das cartas revela a força da imagem pública de Sobral, que por vezes parece se impor ao próprio, como um personagem que influi no enredo do ator. Desponta uma ideia de missão, que parece dotar de um sentido maior as missivas e se ampara, sem dúvida, na centralidade da religião para a identidade pública do jurista. O catolicismo não era uma vaga influência diluída em uma eclético composto de ideologias, como em outros personagens, mas formava o centro da visão de mundo do advogado. Como bem demonstram não apenas as cartas, mas sua conhecida atuação no laicato católico, o principal sentido da sua ação política era a recristianização do Brasil e do mundo. O catolicismo também era responsável por um lugar secundário do país ante a civilização cristã, que relativizava seu nacionalismo, e por uma visão de história capaz de conjugar um profundo pessimismo ante o presente, visto como um tempo de decadência em razão do predomínio da matéria sobre o espírito, com um otimismo em relação a um futuro distante, já que, no fim das contas, a história segue mais os desígnios divinos que os descaminhos humanos.
O senso de missão não decorria, entretanto, apenas do transcendente, mas também se amparava em sua visão do direito e do papel do jurista. Para Sobral Pinto, o advogado era sobretudo um guardião dos valores morais da sociedade e da civilização. O direito era inseparável da moral e da religião, distintamente do que pressupunham os materialistas afinados ao capitalismo ou ao comunismo. Em virtude das suas altas responsabilidades, não era legítimo agir como um profissional movido pela busca do acúmulo de capital, ou mesmo enquanto uma elite intelectual capaz de ditar os rumos da sociedade apenas a partir dos ditames da razão. A advocacia assumia feição semelhante ao sacerdócio, exigindo um desprendimento do interesse individual em prol da moral, da religião e da civilização.
Seja como católico ou como advogado, havia pouco espaço para veleidades pessoais nas ações públicas de Sobral Pinto. As escolhas, lutas e brigas quase sempre ganhavam dimensão grandiosa, retratadas como parte de um embate maior. Mesmo as frequentes autodepreciações presentes nas cartas, já que o jurista muitas vezes ressaltava sua pouca relevância ou capacidade ante o interlocutor, funcionavam retoricamente como demonstração de que a causa valia mais que o advogado. As cartas eram sempre escritas a partir de ponto de vista das grandes questões e valores, que relegavam autor e destinatário a um segundo plano. Sobral operava como voz de algo maior, formulado à moda das sustentações jurídicas grandiloquentes dos tribunais. Por um lado, sua plateia presente era mais restrita, composta apenas por Ceci. Por outro, o texto sempre pretendia falar a um auditório universal, de modo que o destinatário se tornava uma sinédoque do Brasil ou da civilização cristã.
Em meio a essas grandes narrativas, por vezes irrompe, contudo, uma voz usualmente oculta, submersa aos discursos do mito público. Dentre alguns exemplos possíveis, penso em uma carta para Gustavo Corção, jornalista e intelectual público importante, companheiro de Sobral nos círculos católicos do Centro Dom Vital e personagem frequente da correspondência. A carta lamenta o falecimento da mãe do destinatário em tom pessoal, mas formal: há os pêsames pela perda, o recurso à própria experiência e o elogio ao filho, que certamente orgulhou a então recém-falecida. No rodapé da carta há, porém, algo que destoa da maior parte das missivas. Uma nota a lápis, redigida com a caligrafia de Sobral, registra a reação, ou no caso a ausência dela, do destinatário. Lê-se: “Coisa estranha: esta carta não mereceu a menor resposta; nem sequer um telefonema. Nela pus, entretanto, toda a minha sinceridade. 8-5-55”.
O contraste entre caligrafia e a tipografia reforça o tom pessoal da mensagem escrita à mão. Não há um esforço de vincular o evento a grandes questões ou causas, mas apenas o lamento do silêncio, da carta não respondida, da mensagem sem eco. Pode-se, talvez, ler a nota a partir do orgulho ferido, já que o tempo e a atenção alheias são uma das principais formas de reconhecimento. Sem descartar a interpretação, penso que é possível tomá-la como sintoma dos difíceis custos de manter, a todo tempo, certas identidades públicas. Não deve ser fácil coabitar com seu próprio mito.