São Francisco [Rio de Janeiro], 14 de agosto de 1881
Minha Grete do coração,
Neste país, os pretos representam o papel principal; acho que no fundo são mais senhores do que escravos dos brasileiros.
Todo trabalho é realizado pelos pretos, toda a riqueza é adquirida por mãos negras, porque o brasileiro não trabalha, e quando é pobre prefere viver como parasita em casa dos parentes e de amigos ricos, em vez de procurar ocupação honesta.
Todo o serviço doméstico é feito por pretos: é um cocheiro preto quem nos conduz, uma preta quem nos serve, junto ao fogão o cozinheiro é preto e a escrava amamenta a criança branca; gostaria de saber o que fará essa gente quando for decretada a completa emancipação dos escravos.
Na nossa Europa, muito pouco se sabe a respeito da lei referente a esse assunto, e imaginávamos que a escravidão fora abolida.
Mas não é assim. Foi determinado apenas que, do dia de sua promulgação em diante, 28 de setembro de 1871, ninguém mais nasceria escravo no Brasil.
Quem já vivia como cativo nessa época, assim permanecerá até a morte, até o resgate ou até a libertação.
Os pretinhos nascidos agora não têm nenhum valor para seus donos, senão o de comilões inúteis.
Por isso não se faz nada por eles, nem lhes ensinam como antigamente qualquer habilidade manual, porque, mais tarde, nada renderão.
Como são livres, porém, os brasileiros tratam-nos com mais estima e maior consideração do que os escravos natos. Assim, hoje ao meio-dia, foram solenemente batizados oito desses cidadãos do mundo. Na hora do café, tinha notado um velhinho esquisito que falava pouco, mas esse pouco numa língua completamente misteriosa para mim. O doutor Rameiro respondia-lhe em italiano, que fala corretamente. O velho também despertara minha atenção por causa de um gigantesco lenço vermelho muito do seu agrado e pela incrível quantidade de bananas que comia, ou melhor, que devorava.
Fiquei admirada ao saber depois que era um padre católico viajante, o que nunca seria capaz de supor, mesmo porque ele usava roupa civil. Era italiano de nascença e tinha estado em todas as partes do mundo; daí sua linguagem cosmopolita, que inventou muito antes de se terem ocupado com isso na Europa.
Ao meio-dia, abriu-se, na grande sala de costura, um importante armário parecido com um bufê, cujo conteúdo já me havia intrigado, aparecendo lá dentro a Mãe de Deus com o Menino Jesus, fitas, grinaldas, coroas, braceletes, colares e brincos.
O preto Felício, que me acostumara a ver como alfaiate na máquina de costura, todo paramentado, ajudou o padre como coroinha. Tudo isso parecia tão estranho à minha alma evangélica…
Então, uma após a outra, vieram as mães pretas com seus rebentos mais novos, todos muito bem vestidos e enfeitados com fitas de diversas cores; alguns tinham até vestidinhos brancos bordados, devidos à bondade da Santa Inquisição (aqui não posso chamá-las assim), que se haviam prestado a servir de madrinhas, fazendo cristãos a seus irmãozinhos pretos; aliás, por falar em cor, fiquei espantada dessas crianças serem de pele tão pouco escura, quase branca mesmo.
− Eles vão ficar pretos − disseram-me com um sorriso de desprezo, em parte relativo aos pretos e em parte à minha ignorância; só as plantas dos pés e das mãos continuarão claras. Eles dizem que quando Cam[1] emigrou para a África tinha, por ordem de Deus, tocado com as mãos e os pés nas águas do Jordão, que recuaram, afastando-se dele; mas desse contato ficaram para seus descendentes, mesmo sob o sol ardente da África, essas partes mais claras.
A cerimônia começou e presenciei, calada, aqueles pequenos horrorosos de nariz chato e cabelo encarapinhado, receberem nomes como César, Felício Messias (!), Elias, Angélica, Maria Salomé, Marcela e Ruth.
Por que não lhes davam nomes mais simples do que esses que o padrezinho velho da algaravia ítalo-latino-portuguesa lhes impunha por escolha e a pedido dos senhores, se para o resto da vida terão de contentar-se com eles?
Mesmo sendo casadas, a maior parte dessas mães não tem nome de família. Por isso, os escravos libertos, na falta de um sobrenome, adotam em geral, depois de livres, o da família dos antigos senhores. Agradável para estes, não é?
Já que falamos em pretos, quero contar um caso que se passou aqui, há dias.
Foi numa noite da semana passada; lá fora estava fresco e agradável e achávamo-nos confortavelmente tomando chá, quando ouvimos de repente diante da casa um tímido bater de mãos que assanhou todos os cachorros e naturalmente despertou também nossa atenção.
As palmas, aqui, substituem as campainhas, e quando se deseja entrar numa casa, sobretudo no campo, deve-se chamar a atenção, do lado de fora, antes de entrar, para não nos tomarem por ladrões.
Todos se admiraram de chegar alguém tão tarde e mandaram o Toninho ver quem era. Ele foi meio assustado, mas voltou depois até a soleira, em três alegres cambalhotas.
− Lá fora tem dois “tios”, senhor. Os pretos mais velhos são chamados de “tios” e “tias” pelos mais moços, mesmo quando não se conhecem. Acho que esse sentimento de parentesco entre párias contém qualquer coisa de comovente, não é?
− Dois pretos? Não se podendo supor que algum dos vizinhos mandasse um recado àquelas horas, que desejariam eles?
O doutor Rameiro saiu e voltou depois de algum tempo; sua fisionomia, em geral tão alegre, estava sombria.
− Então? − exclamaram todos.
− Dois pobres pretos – disse –, que me pedem pelo amor de Deus para comprá-los.
− De onde vêm?
− Da fazenda do doutor Albus.
− Coitados! Ele é conhecido por maltratar seus negros – disse madame. – Meu marido não precisa senão de ameaçar um negro insubordinado de vendê-lo ao doutor Albus para torná-lo imediatamente dócil.
− Que vai fazer, papai? – perguntou dona Olímpia.
− Que posso fazer, minha filha? – respondeu aflito o velho senhor. – Ele não há de querer vendê-los por bem e pedirá um preço excessivo; a não ser dessa forma, torna-se meu inimigo irreconciliável, se me declaro contra ele; e você sabe que já lhe devo o violento incêndio da mata, no ano passado, que ninguém soube explicar.
− Então esses pobres coitados vão ter de voltar? – indaguei.
− Não posso deixá-los aqui em casa. São propriedade alheia e, se os conservar sob meu teto por uma noite apenas, dificilmente poderei livrar-me da acusação de abrigar pretos fugidos; não posso arriscar-me a isso porque também possuo escravos e tenho necessidade deles. Essas provas de confiança são em si muito bonitas e lisonjeiras, mas profundamente desagradáveis.
− Existem então fazendas onde ainda se encontram as condições horríveis da Cabana do pai Tomás?[2] – perguntei.
− Tão terrível assim, não será em parte alguma e talvez nunca o tenha sido. O brasileiro é mais bondoso do que o norte-americano, e entre nós a gente preta tem condição bem diversa.
– Veja: quando aqui se liberta um preto, concedem-lhe direitos iguais aos dos brancos: temos professores de cor, artistas, médicos, deputados e até ministros. E quem está dirigindo essa dança é a princesa Isabel. O desprezo de um lado e o sentimento de amargura do outro não são aqui tão grandes como entre os nossos irmãos do Norte.
Evidentemente, temos criaturas brutais que maltratam os pobres pretos como ainda vimos há pouco.
− E o que vai acontecer agora a esses pobres diabos? – indaguei.
− Vão receber uma boa surra à noite e serão tratados daqui em diante com maior severidade ainda.
– Mas essas crueldades são revoltantes demais. Vou ver se depois consigo comprar-lhes a liberdade recomendando-os a uma sociedade abolicionista.
− E se o dono não quiser vendê-los? – objetei.
− Se receber um preço razoável, é obrigado a vendê-los.
− Então, por que eles não se dirigiram a uma dessas sociedades?
− Isso é dificílimo, pois seria uma grande falta de inteligência se seus diretores aparecessem pelas fazendas; e como os pretos não sabem escrever, não dispõem de nenhum meio de comunicar-se com elas. Para a maior parte deles, o essencial é receber bom tratamento; a liberdade fica em segundo plano. Eles não têm ideais.
− Já tinha pensado nisso, diante do pouco que tive oportunidade de observar – exclamei. – Se não fosse assim, mesmo bem tratados, viveriam cheios de rancor e ressentimentos.
− É, mas posso assegurar que nesta fazenda nunca haverá isso, nem pretos insubordinados, porque cuido do bom tratamento de alimentação deles e tenho alguns, as pretas especialmente, que há muito tempo já poderiam ter comprado sua liberdade.
− É certo? Mas como ganham o dinheiro?
− Os que pedem, recebem um pedaço de terra para cultivar, e na casa-grande é com prazer que lhes compramos boas verduras; podem também criar galinhas, cujos ovos vendem quando vão buscar a correspondência; e mais outras regalias: as horas excedentes do que é permitido em lei, do trabalho domingueiro, são remuneradas, os pretos e pretas empregados no serviço da casa recebem muitas vezes presentes em dinheiro, principalmente quando são, ou já foram, amas das crianças. A nossa gorda e risonha Ana é uma ‘tia’ rica que deixará herança. Mas prefere ficar, porque tem boa vida aqui e gosta dos meninos. Não compreende a dádiva ideal que a liberdade representa.”
Fiquei satisfeita com essa explicação, pois sempre nos alegramos quando as circunstâncias coincidem com nossos próprios pensamentos e conclusões.
Tinha raciocinado dessa mesma forma e pensava que a brutalidade e a crueldade contra os escravos podiam provocar muitas vezes fatos bastante tristes, o que é fácil de se compreender; mas, por outro lado, não se pode exigir dessa raça, que se acha escravizada há tantas gerações, concepções pessoais altamente civilizadas, nem pretender que adotem nossos conceitos sobre a liberdade, em relação ao homem, e de honra em relação à mulher, o que seria uma aspiração vã ou poética. Mas percebo que, sob o disfarce de uma simples carta, estou ocupando sua atenção com um discurso econômico nacional; para vingar-se, você pode mandar imprimi-la, ou leia-a para os outros − dor partilhada é meia dor.
Agora vou me deitar e meditar sobre a direção em que a nevralgia repuxará meu rosto; meu espelho e eu não nos admiramos mais nem um pouco.
Boa noite, mas, como agora não é noite aí para vocês − bom dia.
Sua Ulla
Ina von Binzer. Os meus romanos: alegrias e tristezas de uma educadora alemã no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, pp. 34-38.
[1] N.S.: Personagem bíblico citado no livro do Gênesis. Filho de Noé e pai de Canaã.
[2] N.S.: A cabana do pai Tomás é um romance de Harriet Beecher Stowe (1811-1896), autora nascida nos Estados Unidos. Publicado em 1851-1852, retrata o sofrimento de escravos negros.