Rubem velho,

Achei que a única lembrança digna de quem já esvaziou oceanos de garrafas era um navio aprisionado. O Neruda tenta convencer-nos que esses navios são feitos à noite, por pequenos duendes carpinteiros. A verdade é menos mágica. Abre-se a garrafa com uma faca de diamante, coloca-se dentro o navio e fecha-se tudo com fogo, sem deixar marcas.

Recebi e li O anjo bêbado. A saudade a gente tem mesmo é das pessoas. Praia, montanha, manga, jabuticaba, é possível substituir ou encontrar em outro lugar. Achar os amigos é que é difícil. Fiquei com uma bruta saudade do Paulinho, anjo bêbado. Aliás, essa saudade já vinha antes do livro. Você deve se lembrar dos campos de girassóis entre Santiago e Valparaíso. Agora, estão floridos e lindos. Sempre que passo por lá lembro de um poema de Paulinho sobre a infância e um cavalo que um dia viu comer um girassol e era estranho feito um homem.

Fora os barcos e os girassóis, ando trabalhando paca. Mas completamente fora do roteiro que havia previsto inicialmente. São artigos para revistas europeias e americanas, organização de uma porção de coisas da pátria amada, recepção de gente – a casa é uma verdadeira pensão, o que é bom – e a continuação dos estudos sobre América Latina, que é um mar insuspeitado. Por falar nisso, as Histórias de Fama e Cronoscópios[1] do Cortázar estarão traduzidas? É uma coleção de joias. Há umas instruções para dar corda em relógio, para subir escadas e para se apropriar de velórios que são maravilhosas.

Acho bom seguirmos o filão do García Márquez e transformar a Sabiá [2] no contador da literatura hispano-americana. Ofereci mandar livros e não tive resposta.

Um grande abraço do

Marcito

Acervo Paulo Mendes Campos/IMS

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[1] N.S.: Trata-se do sexto livro de Julio Cortázar, cujo título é Histórias de cronópios e de famas.

[2] N.S.: Referência à Editora Sabiá, fundada por Rubem Braga e Fernando Sabino em 1967, que no ano seguinte publicaria a primeira edição brasileira de Cem anos de Solidão, sucesso de vendas. Pouco tempo depois, em 1972, a Sabiá seria comprada pela Editora José Olympio.