Veneza, 19 de fevereiro de 1958

Otto,

Acabo de receber sua carta e apresso-me em dar-lhe resposta. Não vou dar maiores explicações, que não é preciso nem vale a pena. Você diz que eu em minha carta de Belo Horizonte dizia apenas que vinha pelo Charles Tellier, mais nada. Pois pensava ter escrito também que era para você escrever para o navio (desembarque), marcando um encontro. Pelo que vejo, não escrevi. E daí provêm os outros equívocos, explicáveis pelo atropelo da viagem e pela canhestrice de um provinciano. Você enumera uma série de providências que eu podia ter tomado. É certo, se não as tomei foi só por falta de imaginação. Mas não vou prolongar essas considerações desnecessárias. São águas passadas, não voltarei a Paris nem muito menos irei a Bruxelas. De fato, só tenho a lamentar o pequeno prazer de que privarei seu pai, que gostaria de estar com alguém que o tivesse visto aqui. No mais, Otto, sinceramente não tenho o que lamentar agora. Até há poucos minutos, sim, agora não. Acho o tom de sua carta irritante e quase antipático. Em outros tempos, tal carta me daria enorme desgosto, hoje só dá uma certa irritação. Não vou explicá-la porque terei que escrever muito e assim poderia dar mais material para exercício de sua sempre reconhecida capacidade de crítica, sua lucidez tão exaltada por você mesmo, seus amigos e até pelos que não têm a ventura de conhecê-lo, mas já tiveram a de ler alguns de seus escritos…

Você diz que “somos velhos camaradas, de uma convivência antiga, que se perdeu no tempo”. Desconfio que é possível que assim seja, caso contrário você não escreveria que espera nosso próximo encontro não se dê tão cedo. “Nossa camaradagem” provinha mais de meu apreço por você, de minhas contínuas procuras de seu convívio, meu interesse por sua pessoa e suas coisas. Posso falar na recíproca de sua parte? Je suis en doute.[1] E o que me levava a essa procura era a ideia de alguma identidade entre nós, em certos pontos. Havia essa identidade, mas acredito que esteja hoje um pouco amortecida: você não é mais menino, nem eu. Amadurecemos, e, com a maturidade, matamos essas dúvidas ou inquietações que tínhamos em comum. Se não as matamos, não lhes concedemos mais direito de se apresentarem.

Verifico que já escrevi mais do que desejava e não gosto de escrever dominado por impressão forte. Posso enganar-me, o que é perigoso quando se dialoga com certas criaturas. Demais, lá fora está Veneza, e eu só tenho a Europa até o dia 14 de março. O endereço que lhe dei de Gênova é da empresa de turismo que remete a correspondência. Mas essa informação talvez já não lhe diga nada. Aliás, quando é que qualquer coisa minha já teve algum interesse para você? Acontece que não sei concluir. Em outros tempos, deixaria o meu abraço amigo. Você terminou a sua com um bombástico “atenciosamente”. Fico em dúvida e deixo a seu critério: você fará como quiser, e como sempre aqui, com acerto.

Francisco Iglésias

Arquivo Otto Lara Resende / Acervo IMS.

[1] N.S.: Estou em dúvida.