Rio de Janeiro, 28 [de] janeiro [de] 1966

Lygia querida,

Sabe que ganhei de Natal uma gravata bacaníssima, cuja está no armário esperando para ser usada numa reunião à altura? E que me de­ram também um pratinho conimbrense muito do gracioso, para guardar pe­quenas coisas importantes do equipamento de um senhor supostamente ele­gante? E que além desses dois mimos me regalaram com um livro de con­tos[1] que é o fino e no qual o meu santo nome aparece no ofertório de uma das histórias mais legais, intitulada “A chave”, em que por trás da chave há um casal velho-com-moça e uma outra mulher na sombra, tudo expresso de maneira tão sutil que pega as mínimas ondulações do pensamento do homem, inclusive esta, feroz: chateado de tanta agitação ani­mal da esposa, com o corpo sempre em movimento, o velho tem um relâm­pago: “A perna quebrada seria uma solução…” Por sinal que comparei o texto do livro com o texto do jornal de há três anos, e verifiquei o minucioso trabalho de polimento que o conto recebeu. Parece escri­to de novo, mais preciso e ao mesmo tempo mais vago, essa vaguidão que é um convite ao leitor para aprofundar a substância, um dizer múl­tiplo, quase feito de silêncio. Sim, ficou ainda melhor do que estava, mas alguma coisa da primeira versão foi sacrificada, e é esse o preço da obra acabada: não se pode aproveitar tudo que veio do primeiro ja­to, o autor tem de escolher e pôr de lado alguma coisa válida.

É difícil agradecer a você tantas boas lembranças de amizade, não só pelo que elas significariam em qualquer momento, como ainda porque chegaram em circunstância que tornou mais ativo, mais prestimoso o seu carinho. Estamos passando um janeiro terrível, você soube, favelas vieram abaixo com a chuvarada, uma pedra imensa arrebentou a tubulação de água, a cidade parou e por toda parte só havia flagelados, tristeza, sujeira, ameaça de tifo. Ainda não passou de todo, aqui em casa con­tinuamos com água racionada, mas esse é o menor dos males que caíram sobre o Rio. E no meio de toda a confusão e sofrimento, é bom contar com presenças amigas, essas presenças que nem precisam ser concretas, não é menor a realidade delas se o pensamento age. Foi o que senti nesses dias de pesadelo, e isso não sei mesmo como agradecer a você.

O livro está perfeito como unidade na variedade, a mão é segura e sabe sugerir a história profunda sob a história aparente. Até mesmo um conto passado na China[2] você consegue fazer funcionar, sem se per­der no exotismo ou no jornalístico. Sua grande força me parece estar no psicologismo oculto sob a massa de elementos realistas, assimilá­veis por qualquer um. Quem quer simplesmente uma estória tem quase sempre uma estória. Quem quer a verdade subterrânea das criaturas, que o comportamento social disfarça, encontra-a maravilhosamente capta­da por trás da estória. Unir as duas faces, superpostas, é arte da melhor. Você consegue isso. Tão diferente da patacoada desses contistas que se celebram a si mesmos nos jornais e revistas e a gente lê e esquece o que eles escreveram! Conto de você fica ressoando na memória, imperativo.

Ciao, amiga querida. Desejo para você umas férias tranquilas, bem virgilianas. O abraço e a saudade do

Carlos

Arquivo Lygia Fagundes Telles / Acervo IMS.

[1] N.S.: Trata-se de O jardim selvagem, livro de contos de Lygia publicado em 1965.
[2] N.S.: Referência ao conto “Meia-noite em ponto em Xangai”, incluído em O jardim selvagem.