Berlim, 19 de fevereiro de 1923

Caro Oscar!

Devo infelizmente confessar que me é bastante penoso escrever cartas; do contrário, terias já há muito ouvido notícias minhas. Tuas cartas, que muito me interessam, há meses me observam e me solicitam de cima de minha escrivaninha, e queixam-se de minha falta de energia. Estivéssemos nós juntos agora, eu te contaria detalhadamente sobre aquilo que no íntimo me comove fortemente. Mas nas cartas, lamentavelmente, devo me exprimir com brevidade e talvez, para ti, obscuramente. Numa de tuas cartas fala-me dos Compromissos que os homens, na concretude da vida, precisam experimentar; sei disso por experiência própria, e sei também que os homens devem suportar a sujeira da vida se desejam sobreviver nos dias de hoje. Sei mais ainda, na verdade, que aos homens não é permitido assumir com leveza o Compromisso da Vida, mas que é preciso sofrê-lo. Assumir o Compromisso significa agir conscientemente contra os próprios sentimentos. Compromisso significa enfraquecimento da consistência. Para os criadores, Compromisso é a supressão do mundo individual, debilitação da criação, processo do qual resultam trabalhos impessoais. Compromissos talvez sejam importantes para as pessoas pragmáticas ou àquelas preocupadas com coisas políticas; para essas talvez seja um bom caminho para levar aos objetivos; para o artista, é um caminho venenoso. Graças à encomenda do retrato no Verão, sobre a qual já lhe escrevi, fiquei um pouco mais rico em peças de roupa e acumulei um pouco de gordura, mas empobreci enquanto ser humano. Caso torne-se frequente tal Compromisso, o resultado é a destruição da consistência artística. Afirmaste em tua argumentação que a vida consiste em Compromissos, e que se deve aceitar a luta para torná-la suportável; está direito, mas é incorreto teu argumento de que Compromisso não é perigoso, apenas desagradável, quando a fé nos objetivos é forte. Isto talvez seja correto para o político, mas não para o artista. Prejudica atualmente o artista a atmosfera espiritual, particularmente ruim na Europa. Estamos cercados por caras envolvidos com câmbio e agiotagem, não se deve olhar para o interior da humanidade, a alma se tornou uma bolsa de valores. É possível ainda encontrar uma alma imaculada, intocada pela vulgaridade da vida real?  É possível o progresso de uma arte sólida sobre um solo apodrecido? Dificilmente ou, melhor dizendo, impossível. Desaparecem os ideais, e com eles a arte. É efetivamente verdade que a arte nos últimos séculos desempenhou um papel muito menor que a política e a técnica. Não é sintoma passageiro que os grandes entre pintores, arquitetos e escritores deixem a Europa e que os outros, sem possibilidade de fazer o mesmo, sejam acometidos pelo anseio de seguir-lhes os passos. Isso por um lado naturalmente representa uma busca pelo dinheiro mais valioso dos estrangeiros, mas por outro lado, e muito mais importante, significa um impulso em direção a um lugar onde o anseio pela arte seja mais forte do que na fatigada Europa. Na América do Norte começam a acontecer grandes exposições de arte e conferências literárias. Buenos Aires emprega atualmente como professor um dos mais modernos arquitetos alemães, Bruno Taut, que lá deverá construir e renovar várias coisas. Japão e Índia têm um grande interesse pelo espírito moderno. Já se percebe em grandes exposições de pintores japoneses e indianos um desprendimento com relação a suas longas tradições, e aparecem já trabalhos que incorrem na concepção moderna de arte. Aqui na Europa, portanto, uma forte apatia – lá (América, Índia, Japão) um forte movimento interior. A penúria material do artista contribui para que a vontade de emigrar mantenha-se acesa todos os dias. Na Alemanha, por exemplo, chega-se à situação onde o pintor, quando vende uma tela, veja-se obrigado a calcular, da forma mais acurada possível, a quantidade de tinta, tela e tempo gastos na elaboração da tal obra, e o quanto deverá pagar a título de imposto sobre o luxo – e outros impostos. O artista deve, portanto, calcular o seu tempo, o mesmo artista que é pouco dado a coisas práticas e que durante toda a sua vida age como uma criança, o artista que destrói suas telas quando elas não lhe agradam, deve agora calcular e tornar-se prático, é forçado a conservar qualquer esboço fracassado na esperança de poder vendê-lo. O artista está cercado por negociantes de arte, especuladores e editores de jornais, que esperam constantemente sua produção para abastecer os mercados. Ocorre o mesmo com os escritores e músicos. Ideais? Tolice. Ainda há alguns artistas cheios de uma potência interna – assim parece – que ainda não foram totalmente tragados pelo Tempo. Pertenço a este grupo, posso dizer com consciência; também outras pessoas afirmam o mesmo a meu respeito, clara e abertamente. Eu sinto frequentemente um anseio por ares puros, longe de toda a sujeira que me cerca. Às vezes, quando minha alma se encontra demasiadamente carregada, imagino que esse recanto, onde me seja dado realizar alguns de meus planos, encontra-se no Brasil. Fui encorajado quanto a isso também pelos brasileiros com os quais convivo aqui, mas no momento me parece muito difícil a realização desse anseio. O que achas disso? É evidente que não posso contar com um sucesso imediato. Eu alimento grandes planos, a saber, promover grandes exposições no Brasil e na Argentina, não só de trabalhos meus, mas também de outros com os quais tenho mantido contato; planejo também conferências etc. Para tanto é necessário, além de dinheiro, energia e perseverança. Possuo os dois últimos elementos, caso o estímulo para eles apareça. Margarete e eu pensamos seriamente no Brasil; de resto, em que país poderia pensar? Outros países que me são muito, muito importantes, permanecem apenas como sonhos para mim. Tenho trabalhado pouco nos últimos dois anos, mas produzi alguns bons trabalhos. Falta-me a forte necessidade interna, assim como me falta o impulso para o trabalho. A vida prática exige muito e enfraquece a energia artística. Nestes últimos tempos sinto-me às vezes ridículo quando penso em arte. O que é arte? Esta questão é frequentemente discutida, e essa é justamente a tragédia. Formulam-se teorias, escrevem-se milhares de livros, mas a arte não se engrandece com isso, pois a arte não precisa de nenhuma palavra, quer apenas ser compreendida silenciosa e naturalmente, como o Sol, como o pranto. Pela teoria concluo que há agora pouca arte vigorosa e que a demasiada preocupação da humanidade por política e questões materiais rouba seu tempo e interesse pela arte. A humanidade está embotada. A arte, como eu já havia mencionado no início desta carta, desempenha um papel muito menor em comparação com a política e a máquina. Em outros tempos, a arte ocupava o ponto máximo da cultura, mas agora está muito afastada desta posição. Estou convencido, no entanto, de que um dia o anseio pela arte renascerá, assim como o amor ao próximo.

Tu me perguntas se existem partidários da arte moderna, especialmente entre os operários, por quem demonstras forte interesse. A arte moderna tem muitos partidários; não encontrarás na Alemanha uma galeria de arte que não possua sua seção de arte moderna, e isso já é muita coisa. A temática “Arte para operários”, “Arte para o povo” me ocupou fortemente por algum tempo. Isso foi há cerca de dois anos.  Naquele tempo participei da fundação de uma escola “Comunidade de Arte de Operários”, mas me afastei depois de pouco tempo, não dos operários, mas da ideia de arte voltada para uma classe específica. A arte deve ser para todos! Arte não é política, arte política é uma narrativa, é agitação, é tendência, é apenas um meio para um objetivo. Arte reside na concepção, e não na narrativa. Tua pergunta é certamente legítima, porque nós todos estamos inseridos na concretude da realidade e o artista, que se encontra fora da realidade, será considerado infantil, sonhador e fantasioso e parecerá supérfluo. Aparecem artistas tendenciosos na Alemanha, alguns com grande êxito; eles são festejados e considerados importantes, também pelos operários. Tem isso algo a ver com arte? Não, porque na arte a criação, a forma, devem estar acima do conteúdo. O conteúdo é apenas estímulo, e deve inspirar a fatura de uma grande forma; deve-se observar apenas a forma, sem se deter no conteúdo. A arte política é passageira, perde-se na narrativa e merece ser observada apenas como um documento histórico de seu tempo. O artista não pode pensar em classe, em agitação por meio da arte, mas em si e na totalidade dos homens, e deve lutar com a forma sempre em vez do conteúdo. Agora encontra mais facilidade o narrador, e mais dificuldades o criador, considera-se o primeiro importante, e o segundo supérfluo, e assim certamente será enquanto a humanidade não sentir o anseio pela elevação da alma e da mente. A época é cruel e arrebata mesmo a mais firme rocha; aqueles, entretanto, que não sucumbem à máquina, serão os condutores espirituais da humanidade e proporcionarão aos homens um novo florescimento do espírito. Se isto é apenas um sonho fantástico, o futuro dirá! Eu exijo de todos, sobretudo dos criadores, que se libertem da vaidade, que trabalhem com sinceridade e em consonância com seus sentimentos, que conduzam seu universo por força própria até a perfeição. Precisamos voltar a ser homens, e então a grande arte virá.

Mania já lhe escreveu sobre Gorelik. Em todo caso, ele prometeu escrever-te uma carta pormenorizada sobre esse assunto e disse inclusive que já o fez. O senhor Gorelik deseja permanecer cerca de um ano na América do Sul (Argentina), quer fazer algo que considera importante, que é revigorar-se durante a viagem, proferir palestras a fim de progredir um pouco materialmente. O escritor judaico Naumberg, que te visitou durante uma estadia em São Paulo, encorajou o senhor Gorelik para que realizasse este plano. O fato é que Gorelik, um dos meus melhores amigos, pretende ficar vários meses em São Paulo, desde que possa contar contigo e com Ida. De vocês, como meu amigo, ele espera algum auxílio moral, quero dizer, que vocês o ajudem a organizar algumas palestras junto aos círculos judaicos. Seria bom que os círculos judaicos em São Paulo e no Rio de Janeiro já fossem cientificados da viagem dele, assim se poderá fazer alguma coisa para que ele tenha algum dinheiro. Isto funcionou para o senhor Naumberg. Acredito que o senhor Moritz Klabin também possa fazer algo pelo senhor Gorelik. Eu soube, a propósito, que o senhor Klabin vem a Berlin, e poderemos então tratar disso com ele.

Então chega por hoje. Em breve escreverei para Ida e Jacob.

Lasar

Acervo Museu Lasar Segall