Petrópolis, 4 de abril de 1964

Estamos vivendo uma hora muito sombria, em que urge a restauração ou a instauração de um governo civil, para pôr cabo à onda de terrorismo e fanatismo que invadiu o país e se traduziu particularmente em Belo Horizonte com o varejamento do Convento dos Dominicanos (sic). Leio nos jornais o relato e o protesto de frei Martinho Burnier[1] e vou escrever-lhe solidarizando-me com ele embora possa bem chegar a hora de ter ele de se solidarizar comigo, tal o desmandamento da polícia aqui na Guanabara e em São Paulo e outras cidades. E dizer-se que tudo isso é feito em nome da “liberdade”, da “democracia”, sob pretexto de “combate ao comunismo”. As mulheres “democráticas”, particularmente, estão assanhadas e pedindo, junto com o presidente da UDN (o banqueiro milionário Herbert Levy, felizmente desautorizado por um colega, especialmente pelo Adauto, sempre decente), que se cassassem já todos os mandatos dos deputados “esquerdistas”. Já não é apenas de comunistas. É de esquerdistas que se fala.

Tudo isso é sintoma do clima fascistizante em que estamos mergulhados, sob pretexto de restaurar a democracia. Felizmente os dois grandes jornais que tenho lido – o Correio da Manhã e o Jornal do Brasil – estão extremamente serenos, embora entusiasmados com a “revolução” pois a palavra “golpe” ficou mal vista. A última notícia é que o Jango e o Brizola já estão no Uruguai, onde dona Maria Thereza já havia che­gado com os filhos. Como tudo muda em dois dias! Só mesmo o Brasil.

Outra notícia é que o Mazzilli, o pateta (mas antes ele que um sargentão), já nomeou alguns ministros civis, inclusive o da Educação, que é o reitor da Universidade de São Paulo,[2] que eu conheço pessoalmente embora só de rápido encontro, pois era diretor da Faculdade de Direito, e presidiu a sessão quando ali falei no ano passado, já não me lembro bem sobre o quê, creio que sobre a Pacem in terris e com a presença do cardeal Motta e do saudoso Queiroz Filho.[3] É pessoa de catego­ria, embora essas nomeações possam ser só efêmeras porque o Mazzilli está no poder no máximo por 30 dias, até que o Congresso escolha o novo presidente até o fim do mandato, em 1965. Falou-se em um militar e provavelmente no Dutra (sic), velho faraó embalsamado, que serve para essas circunstâncias. E devemos preferir a qual­quer lacerdista fanático ou militar sargentão. De modo que esses novos nomes para o ministério arriscam-se a ser apenas um tapa-buraco. Mais uma vez se faz uma “re­volução” ou se dá um golpe com uma finalidade negativa: o antijanguismo e o anti­comunismo. São duas finalidades e se conjugam. Ora, nada se constrói sobre o não. E dada a precipitação dos acontecimentos só se vê uma coisa: destruir tudo o que o Jango vinha fazendo, mal ou bem, e no momento só veem o mal, incluído o nosso Carlos Drummond que, com surpresa minha, num artigo de hoje se lança violentamente contra o Jango. Confesso que achei, no mínimo, deselegante. Se o Carlos tivesse dito tudo isso como o Lacerda ou como o Hélio Fernandes ou como o Jornal do Brasil ou como o Diário de Notícias, em suma como o fazia a oposição militante, dentro ou fora do Congresso, então teria autoridade para continuar agora. Mas, tendo se mantido à margem ou reticente (assim o creio, embora só pudesse afirmá-lo categoricamente se tivesse lido tudo o que ele escreveu anteriormente), não fica bem vir agora, com quatro pedras na mão, ou mesmo com a metralhadora portátil de um ótimo esti­lo, dizer essas violências pelas costas do outro e quando a força está toda na mão da polícia do “Carlos”… E o Carlos, que foi nitidamente comunista, com a Rosa do povo e a “Carta a Stalingrado” e, portanto, iria incorrer nas iras das “mulheres democratas” ou dos esbirros do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), tão odioso quanto o Pide[4] de Portugal ou a Gestapo nazista ou a polícia secreta…

Política tem ética, assim como a polícia totalitária. Ora, diga-se o que se disser do Jango, acusem-no de estar “preparando” a entrada do “comunismo”, o fato é que nunca tolheu a liberdade de ninguém e os oposicionistas o insultaram do modo mais violen­to, inclusive a sua mulher, pelo rádio, pela tribuna, pelos jornais, sem que houvesse nunca um clima de perseguição e de retaliação. Honra lhe seja feita. E chegam os democratas “salvadores” (não o MP, que já proclamou a necessidade de não haver perseguições, etc., e outros que mantiveram a cabeça no lugar) e a primeira coisa que fazem, ou que se faz em seu nome, é negar a liberdade, invadir os lares, mandar governadores para Fernando de Noronha, como Arraes, tomar conta das próprias federações da polícia estadual, como vi na rádio outro dia, e com isso é que se inaugura o regime “democrático”! É uma farsa, uma impostura, que só será perdoável se cessar logo, apenas seja restabelecida a ordem legal, pela eleição do sucessor do Jango e constituição definitiva de um ministério democrata. Por ora, estamos em pleno arbítrio, com os jornais depredados (Última Hora), os jornalistas refugiados nas embaixadas, os rádios governamentais de ontem lacrados e a polícia invadindo os lares! Tudo sob pretexto de “combater o comunismo” e com isso justificando a tese comunista de que só a força é que faz o poder, de modo que só por meio dela é que se constituem os regimes. A prova está aí: “democratas” a praticarem as maiores arbitrariedades militares, sob pretexto de que estão empregando os mesmos meios que os outros empregaram!

[…][5]

P.

Alceu Amoroso Lima. Cartas do pai: de Alceu Amoroso Lima para sua filha madre Maria Teresa. São Paulo: IMS, 2003, p. 377-379.

[1] N.E.: Frei Martinho Penido Burnier (1918-1971), exegeta e jornalista.
[2] N.E.: Luís Antônio da Gama e Silva (1913-1979), professor, foi ministro da Justiça e Negócios Interiores e da Educação e Cultura de 4 até 15 de abril de 1964, quando então reassumiu o posto de editor da USP.
[3] N.E.: O paulista Antônio de Queiroz Filho, que Alceu conhecia desde 1931 e saudou, como exemplo de humanista cristão democrata, numa crônica escrita por ocasião de sua morte (1963), incluída no livro Companheiros de viagem.
[4] N.E.: Polícia Interna de Defesa do Estado, órgão repressivo da ditadura salazarista.
[5] N.S.: Trecho suprimido na edição-base.