Petrópolis, 13 de maio de 1969
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Muita gente e pouco espaço no enterro do Rodrigo. Tanto assim que nem vi que dom Marcos estava celebrando missa de corpo presente. Fiquei conversando com o Américo Lacombe,[2] o Xará[3] e outros. Havia em todos um sentimento profundo e também visível. Apesar das inevitáveis conversas, respirava-se um ar de vazio, de perda, de partida de um homem excepcional, e que marcara todo mundo pela sua modéstia, pelo seu desprendimento, pela sua autenticidade e sua absoluta falta de autopromoção: exatamente o oposto dos oportunistas e promocionistas que abiscoitam altas posições por sua adulação dos poderosos, mesmo que não lhes falte valor, como um Josué Montelo, por exemplo, típico carreirista, de alto valor, amplamente recompensado pelas sinecuras, além de tantos outros menos representativos, mas não menos oportunistas, como… sei lá. O Rodrigo era exatamente o oposto de tudo isso. Era o carvalho no meio de todos os salgueiros e caniços deste mundo. E morreu “estoicamente” como já o Rui[4] me dissera e hoje o Drummond o conta numa página de alta pureza e beleza. O Drummond tem qualidades morais do tipo das do Rodrigo, e só faz piruetas estéticas quando fala de coisas que só o afetam cutaneamente. E o Rodrigo foi mais que um subcutâneo, foi um órgão profundo e visceral.
Quem me levou, com o Athayde, ao cemitério, foi o [Pedro] Calmon, que junto ao túmulo discursou, trepado em outro túmulo para ser bem visto e ouvido. E merecia. Mas… banalidades supremas… Também falou dom Marcos,[5] mas tão baixo (ele é o antiCalmon, por natureza, e tem alguma coisa do Rodrigo), mas com uma emoção lírica de poeta, que não havia no Rodrigo. Contou-me dom Marcos, que ultimamente privara com o Rodrigo no Conselho de Cultura, que o admirava cada vez mais, que era um homem extremamente bom, mas que não conseguia ter qualquer vislumbre de fé. “Como é que um homem tão bom pode não crer em Deus?”, comentava dom Marcos.
Eu penso de modo diferente: crer em Deus, amar a Deus, sentir que o mundo sem ele seria um absurdo nada tem a ver com a bondade ou com a maldade dos nossos corações, como também nada tem a ver com a lucidez de nossa inteligência. Há cristãos burros e maus, ou uma ou outra coisa, e há ateus geniais e bons… Creio que em Santo Tomás há esse reconhecimento da possibilidade perfeita de uma dissociação deste gênero, mostrando como o ser humano é realmente e, acima de tudo, uma caixa de surpresas e de combinações infinitas de qualidades e defeitos, de erros e verdades, ora harmonizadas, ora em perfeita contradição. No Rodrigo a contradição foi entre o ateu e o santo, que coexistiam nele de modo surpreendente (santo em sentido humano natural, não hagiológico).
E por falar nessa “revolução dos santos”, que está provocando uma “contestação” maior nos católicos mais catolicões ou simplórios, ou conservadores ou reaças, do que todas as “subversões” dos fiéis, contra as quais o nosso papa disciplinador ergue, cada semana, o seu dedinho em riste, antes que o seu sucessor pegue no chicote, interpretando, literalmente e inquisitorialmente, como querem os reaças e catolicões, o “azorrague” de Nosso Senhor contra os “mercadores do templo”.
Dizia-me a dona da Frutaria Gomes, ontem à tarde: “Que é que há na nossa Igreja? Agora querem mexer com os santos! O povo está desapontado!”. E quando procurei cuidadosamente demonstrar que a Igreja agiu muito bem, para mostrar que a Fé não é nenhuma inspiração folclórica, disse-me ela: “Por que não fizeram isso há mais tempo?”, com o que eu concordei logo. Há muita coisa que devia ter sido feita há mais tempo, como se dirá no século XXI, quando houver mulheres sacerdotes, padres seculares casados, a Igreja aceitando o comunismo, como hoje aceita – e até promove – o capitalismo etc. e tal pontinhos. E os dom Helder’s cardeais, se então ainda houver cardeais!
“Por que não foi feito há mais tempo?”, dirão os fiéis do ano 2069, quando suprimirem os cardeais e colocarem os operários no lugar dos milionários como sustentáculos do culto…
Bem, mas não extrapolemos…
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Ciao,
P[apai].
Alceu Amoroso Lima. Diário de um ano de trevas: cartas de Alceu Amoroso Lima para sua filha Madre Maria Teresa: janeiro de 1969 – fevereiro de 1970. Organização de Frei Betto e Alceu Amoroso Lima Filho. São Paulo: IMS, 2013, pp. 137-138.
[1] N.S.: Trecho suprimido da edição-base.
[2] N.E.: Américo Jacobina Lacombe (1909-1993), advogado, escritor e historiador, dirigiu a Fundação Casa de Rui Barbosa e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
[3] N.E.: Refere-se a Austregésilo de Athayde.
[4] N.E.: Refere-se a Rui Coutinho, médico e amigo de Alceu.
[5] N.E.: Refere-se a dom Marcos Barbosa (1915-1997), monge beneditino, poeta, tradutor e cronista.
[6] N.S.: Trecho suprimido na edição-base.