19 de março de 1971
Rio de Janeiro, 19 de março de 1971
Mi querido Ricardo,
Recebo tua carta num dia feliz para mim. Desde que vim de Barcelona sofri muito no Brasil, não são coisas exteriores, mas coisas da vida íntima. O Brasil é um país difícil e maravilhoso. O brasileiro se deixa prender às piores mediocridades para ter o direito de viver as maravilhas daqui, que são as melhores do mundo.
Eu tinha pensando em voltar a viver hasta la muerte no Brasil: e toda minha vida se caminhava para esta solução. Encontrei problemas vários: dificuldades políticas, problemas conjugais, confusão cultural e, sobretudo, a grande onda formada contra mim por: a) a direita intelectual; b) a esquerda intelectual fracassada; c) alguns cineastas jovens.
Ou seja, meu querido Ricardo: aos 32 anos eu estava, nesta bela e miserável cidade do Rio de Janeiro, obrigado a pagar em público o preço de ser Glauber Rocha. Eu também passei a odiar Glauber Rocha, o Cinema Novo, tudo. E cai numa depressão terrível. Mas reagi, pois sou homem de muita força interior e tenho grande capacidade de auto-crítica e auto-defesa. Entrei tecnicamente para um tratamento psicanalítico e desenvolvi a fundo outras experiências de excitação psíquica: hoje me considero um outro homem, não um novo homem, mas um homem que deixou de ser o Glauber Rocha angustiado e masoquista que você conheceu para ser um homem mais alegre e entusiasmado com a vida.
Abandonei o Cinema Novo, que já não tinha nenhuma condição politica e cultural de sobreviver, mas conservei a beleza da amizade que tenho com alguns homens de cinema do Brasil: [Walter] Lima, [Ruy] Guerra, Pedro [de Andrade], [Cacá] Diegues, [Nelson Pereira] dos Santos, [Luiz Carlos] Barreto, [Alex] Viany, [Leon] Hirzchman, [Eduardo] Escorel e mais uns dez outros são excelentes figuras humanas, homens de talento, honestos, dedicados ao cinema de corpo e alma. Estes amigos são muito importantes para mim. Infelizmente tenho a lhe informar que eu e Rosinha [Rosa Maria Penna] nos separamos, o que me deixa triste, mas foi melhor assim: eu quero levar uma vida de aventura pelo mundo. Ela quer estudar, trabalhar, outras coisas. Uma tristeza, uma mulher que muito amei na minha vida e amo ainda. Mas cheguei à conclusão de que seria melhor uma separação, pois eu não podia viver no Rio de Janeiro, são oito anos de vida aqui, a paisagem esgotou para mim, quero continuar viajando. Meu amigo André Gouveia, que foi meu assistente em África, e é o ator jovem de Os Herdeiros [Filme de Caca Diegues de 1969], morreu em Paris num desastre de motocicleta. Estou fodido com isto. Vou partir dentro de alguns dias para Buenos Aires, quero agora fazer um outro filme. Passei um ano sem trabalhar para sofrer, pensar, revisar meus filmes e chegar às conclusões simples e honestas que expressei na minha entrevista ao Le Monde. Ou seja, Ricardo: não quero continuar sendo Glauber Rocha o jovem revolucionário cineasta de terceiro mundo. Este papel é pesado para mim, é instrumentalizado pela esquerda e utilizado pela direita, eu sou um artista livre, não quero ter compromissos a nível moralista, profissional, cultural ou politico. Não posso ficar no Brasil porque aqui sou uma pessoa meio oficial e meio underground, sou um dos homens mais famosos do país, a imprensa se ocupa diariamente de mim falando de minhas idas à praia, minhas viagens, em que restaurante eu como, me acusam de comunista, marijuaneiro, de vendido ao fascismo, me chamam de gênio, de orgulho do Brasil no exterior, de decadente, de fracassado. Uma merda. Eu vivo uma vida simples e medíocre, vindo conversar com Viana e fazendo coisas medíocres, escrevendo alguns artigos no Pasquim, fiz uma entrevista semi-humorística com Gabo, etc. Felizmente não tive problemas financeiros: comprei uma casa pra minha mãe mas perdi cinco mil dólares com Gustavo Dahl, numa transação bancária. Fui obrigado a pagar a dívida que tinha avisado, compreendes?
Agora, vou partir. Inicialmente para Buenos Aires, assinei um contrato com Klauss Hellwig, Frankfurt, para fazer um filme para a tv alemã. Pagam-me 30 mil dólares. Espero armar uma co-produção em Buenos Aires ou outro país: vou seguir trabalhando pela América Latina, quero fazer muitos filmes, sempre compromissos com escolas, tendências, princípios, programas. Não quer ser mais coerente entre um filme e outro – quero apenas manifestar a minha fantasia com o máximo de liberdade possível: fracassarei algumas vezes, outras vezes farei filmes belíssimos. Sinto-me feliz assim, não quero mais ir a festivais por obrigação nem participar de nada que seja oficial ou constrangedor. E quero apenas os amigos que me aceitem como eu sou e não me exijam absurdos viciados de um mundo que morreu. É isto, meu querido Ricardo. Gosto muito de você, sei que Cabeças Cortadas é um filme difícil. Você deve ter sofrido para defendê-lo. Você é um homem de caráter e culhões. Um homem que eu tenho junto a mim como um amigo profundo. Esta carta é uma confissão que nunca fiz a nenhuma outra pessoa.
Os filmes estreiam em Paris: Paris está em chamas. Eu não pertenço a Paris. Que são esses filmes? O que é o cinema? Eu acho Cabeças Cortadas uma novidade cinematográfica absoluta. Terá defeitos? Mas que importam esses defeitos diante da visão do filme? Cabeças é diferente de tudo. Podem não gostar, outros gostam, não é um sucesso comercial, mas todos sabíamos que não serie. Eu gostei de fazer este filme. Não li o livro do Augusto, pois não me enviou. Vou para Buenos Aires, me envie para o endereço do Pallero ou Walter Achugar toda correspondência para o endereço de Walter Achugar, de Edgard Pallero ou de Salanas, em Buenos Aires.
Estou entusiasmado, cheio de planos, solitário, descomprometido, e feliz. A vida é para ser vivida no presente e não em função do futuro. Cada momento de minha vida tem sido atualmente pleno de vitalidade. Serei acusado de amoralista, mas a colcha de retalhos do mito em torno de Glauber Rocha não me interessa porque não sou mais Glauber Rocha, sou um outro, homem simples, camponês, homem de afetividade sem intelectualismo: tua juventude e a juventude de Buñuel são exemplos para mim.
Beijos a Nieves a um abraço profundo do teu amigo. Escreva-me sempre,
Glauber
Fonte: Cinemateca de Valência