Belgrado, 22 de agosto de 1954.
Meu caro Vasco,
Estou escrevendo às quatro da madrugada. Sua carta de doze do corrente me deu grande prazer. Há muito que não tinha notícias suas, mas era evidente que você deveria estar atrapalhado com os habituais incômodos da instalação.
Gostei de saber das suas próximas gravações com o grande Mignone.
Tenho trocado cartas com o nosso imenso Villa-Lobos, a propósito dos discos em que, embora com palavras minhas, não consta o meu nome. Você me havia aqui aconselhado a intentar um processo. As companhias norte-americanas são em verdade responsáveis. Em todo caso, preferi aguardar os acontecimentos, e me limitei a fornecer informações sobre o assunto às pessoas que me interrogaram sobre aquela estranha omissão do meu nome. Quando pedi o seu conselho, você me disse o contrário do que me aconselhara aqui. Enfim, admiro o Villa-Lobos e não concordo com certa campanha que se faz contra ele. Você bem sabe que não aprovei, no seu livro,[1] as referências irônicas e até hostis que ali há, a partir de um certo ponto até o final. Bem, este assunto está em vias de arrumar-se. O Villa me escreveu que se estava dirigindo às companhias norte-americanas gravadoras dos discos, para que o nome do autor da letra, como é de direito, figure. Não são os direitos autorias que me interessam no caso, mas os direitos morais a ser o pai dos meus filhos.
Fiquei triste de saber que foi você o autor da brincadeira de pedir um relatório, um boletim mensal sobre a Albânia, Bulgária e a Hungria… Que valor têm as informações porventura obtíveis (na imprensa dirigida de Belgrado) sobre o que se passa naqueles países? Sou fiel àquele velho método de só informar aquilo que colhi de boa fonte. Ocorre, aliás, que não há tempo sequer para informar sobre tudo que se passa na Iugoslávia e que, pelo regulamento, seria necessário remeter. Você já se esqueceu das condições de trabalho aqui? A embaixada virou consulado depois da sua transferência. O Santos Lima[2] trabalhou o dobro de você. E o Rainho três vezes mais. A renda de julho foi de seis mil dólares. Por aí você avaliará. O problema é agravado pelas dificuldades de auxiliares. Depois da Yolanda, que você detestava (e não andava errado), tive aqui durante dois anos a madame Vida Jovanovic, ex-auxiliar da legação suíça. Perdi-a, agora, porque a Suíça se foi. Estou experimentando uma moça tranquila, casada, já com uma filhinha, filha de um falecido porteiro da legação iugoslava em Lisboa. É de ótimo caráter e diligente. Como o serviço é muito, preciso de outro auxiliar, e creio que o encontrei na pessoa de um estudante da politécnica, indicado por essa moça. Este fala também várias línguas e é bem-educado, silencioso e de bom caráter. Vou, em tempo oportuno, regularizar tudo isto junto à Secretaria de Estado. Por enquanto estou pagando do meu bolso a esses dois auxiliares. Porém, o que mais me ocupou, desde o meu regresso do Brasil, foi a conquista da nova casa. Nela estou já desde os princípios do mês passado.[3] A 12 de julho fui para a França em férias e corri os meus médicos. Aconselharam-me La Roche Posay, termas do Poitou, boas para os rins, o fígado e a pele. Eu estava todo tatuado com uma micose esquisita. Passou isso, felizmente, com aquelas águas, das quais voltei a 14 do corrente, conforme talvez você terá visto pelo meu telegrama de retomada de exercício.
A instalação não está acabada. A casa é como cavalo comprado de cigano. Vai-se ver, o bicho é cego de um olho. Tenho o problema do telhado, que os técnicos, ao examiná-lo, estragaram mais… A canalização (calhas) está toda comida pela ferrugem, destruída. E devo empreender a construção de uma garagem. Chovia só num recanto do telhado. Depois das andanças de três enviados de três empresas de reparações, chove por toda parte no grénier,[4] porque as patas dos iugoslavos quebraram mais telhas, quem sabe se adrede… Você sabe o que é este país! O meu consolo, porém, é que o meu futuro sucessor aqui não terá que sofrer o que sofri. Encontrará uma casa espaçosa, com jardim, e até provisoriamente um subsolo aproveitável para chancelaria, cujo inconveniente único é a vizinhança da cozinha e das dependências de criados. Mas em todo caso, em comparação com a casa do Djika Bjoka, é “un chateau” (expressão do Dragui, sempre seu amigo e se recordando de você com aquela habitual cortesia e doçura).
Estou ainda a braços com eletricista, pedreiro, carpinteiro, jardineiro, ceramista (para fogões de aquecimento), funileiro et caterva…[5]
E você quer informações sobre Albânia!…
Deixei para responder à CT-impacto quando voltasse das férias terapêuticas. Agora que sei que se trata de uma iniciativa sua prefiro dar-lhe aqui estas breves informações. Responderei oficialmente em tempo oportuno. Também responderei oficialmente a qualquer pedido de boletim político mensal. Doutor Vasco Mariz: diz o senhor que os ofícios se dispersam nos maços e que o boletim é que é necessário… é precisamente o contrário! Todos os assuntos importantes foram e são tratados por ofício, telegramas, etc. Quando for preciso saber o que a Embaixada informa (por exemplo sobre Trieste ou sobre o pacto balcânico) é só pedir o maço respectivo. Os BOLETINS, isso sim, é que são uma vala comum, onde a multiplicidade dos assuntos não favorece o surgimento de um caso qualquer. Pura escrevinhação jornalística. RECUSO-ME a mandar boletins mensais, de vez que nestes sete anos de labor na Iugoslávia tratei EXAUSTIVAMENTE de todas as questões de interesse para o Brasil. Isso mesmo direi oficialmente, se algum amigo da onça (que espero não seja você) quiser fazer a pilhéria de reclamar. Os “boletins políticos mensais” são bons para as missões diplomáticas que pouco têm a informar. Aqui, há quatro casos maiores: 1) Evolução interna do comunismo iugoslavo. 2) Evolução externa da política iugoslava, até certo ponto em contraste com o regime interno. 3) Relações com a Itália e outros vizinhos (Trieste incluído). 4) Atitude do regime em face da Igreja Católica. No Ministério há resmas e resmas de papel sobre tudo isso… Poderei um dia, com licença da autoridade superior, publicar esses ofícios, que constituirão vários volumes… E você, embora haja todo esse papel substancial aí, me fala em “boletim político mensal!” Não tapearei o Ministério. Não farei boletins mensais. Aos 57 anos, tenho a certeza de me haver conduzido honestamente para com os meus deveres, e para com os meus chefes superiores. Enganá-los com um boletim escrito em cima da perna, não. Os ofícios, esses, são claros e específicos. Se ao Ministério interessa a vida política deste país, aí estão os ofícios. De resto, tenho aqui cartas dos meus chefes e colegas que me provam que esses ofícios, quando levam alguma coisa de mais importante, são lidos. E tenho cartas dos mesmos chefes e colegas aprovando a minha orientação de ser parco nos telegramas, e exaustivo nos ofícios. Não quero fazer figuração. Quero só dar o meu recado corretamente. Na sua carta, com a sua habitual bondade, você me oferece os seus préstimos no Ministério. Pois bem, aí está um caso em que você, conhecendo o posto, e a mim, poderá evitar-me o dissabor de dizer oficialmente certas verdades como estas. Fazer boa diplomacia para o Brasil não é redigir mensalmente um boletim político, um boletim econômico, um boletim militar… Isso é bom para postos em que não há o que fazer.
Agora respondo a parte da sua carta em que me aconselha a pensar em Lisboa. Repito o que lhe disse pessoalmente muitas vezes: não penso em Lisboa, não penso em posto algum. Tanto mais agora, que me estou instalando, e em que serei dentro em breve o decano do corpo diplomático. Este posto para mim é ideal: atende às curiosidades do meu espírito, oferece-me uma vasta matéria para reflexão, e vai bem com a minha saúde. Daqui, se eu puder levar a efeito os meus modestos planos de vida, só desejo sair para a aposentadoria. O único posto que tentaria a minha consciência de brasileiro e de cidadão do mundo é a Alemanha. A chave do futuro da Europa está lá, na Alemanha. Se ela persistir nos propósitos democráticos, o mundo está a salvo do comunismo. A grande crise da Europa, sobretudo da Europa Central, tem a sua raiz na “ausência” da Alemanha. Já no plano econômico ela fez prodígios. Se puder fazê-los no plano político, moral e intelectual, a Europa está salva. (E dizer Europa é dizer: a nossa civilização ocidental.)
Estou cem por cento solidário com a ideia de que a Alemanha e a França devem fazer as pazes, mas de verdade, de coração, dentro do peito. A subsistência do dissídio franco-alemão será a brecha pela qual a Rússia comunista entrará como triunfadora na área ocidental (favorecida pelos cavalos de Troia dos partidos comunistas locais).
Por outro lado, não participo da ideia de que é preciso manter um fosso entre o Ocidente e o mundo comunista. Não. Devemos estar presentes em toda parte e em toda parte observar a fisiologia dos organismos por ora sujeitos à pata comunista. O mundo de amanhã não será igual ao de hoje, e bem menos ao de ontem, mas não creio que será o mundo sem liberdade, o mundo opressivo, o mundo policial dos países comunistas. Acredito piamente em que nos países comunistas, no seio dos seus governos comunistas, há homens cansados do totalitarismo staliniano, homens que esperam auxílio do Ocidente (não seja senão a mão estendida) a fim de modificarem os regimes respectivos. Porque, meu caro Vasco, se o mundo tivesse que seguir a pauta comunista, o seu hediondo materialismo e a sua hedionda hipocrisia, então não valeria a pena viver. Temos que encontrar a linha de equilíbrio da justiça social. Nem estatismo rígido, nem o “avança” dos países capitalistas, em que os mais audazes exploram os tímidos, os mais discretos, os honestos e (cela va sans dire)[6] os desamparados.
Ao inverso da propriedade social, que é uma tapeação, devemos instituir a propriedade para todos. Assim como todos, ao nascer, têm direito ao ar respirável, devem também ter direito ao solo. Todos devem nascer proprietários. Nessa fórmula ampla estão os problemas do lar da família, do teto assegurado, do jardinzinho, do mamoeiro, do coqueiro do lado.
Esta divagação já vai longe. Escreva-me sempre, quando tiver um tempinho.
Nestes próximos dois ou três meses ainda serei parco em ofícios políticos, porque estou absorvido pelos dois monstros do momento: a rotina da chancelaria consular e as dificuldades de terminar a instalação. Depois, retomarei o ritmo.
Ainda não vi o Tito[7] depois da minha volta de férias. Não estive aqui por ocasião da visita do imperador da Etiópia. Estarei quando chegar o presidente da Turquia. E o rei da Grécia. (Quem diria? As voltas que o mundo dá!) Sou fiel a certas intuições, e espero que outras voltas ainda dará este país, no sentido que nos interessa…
Recomende-me a sua senhora e receba o abraço do seu amigo
Couto.
Ontem pela madrugada entrou aqui um ladrão, que pulou a janela da sala de jantar. Eu estava no terraço do jardim com três amigos. O sujeito me acreditava sozinho, porque eu fora à calçada despedir-me do Miñana, Lina e dois mexicanos. Escondeu-se atrás de uma porta. Travei luta corporal e tive que dar-lhe uma surra para dominá-lo, porque ficou furioso. A milícia levou uma hora para me acudir. Os milicianos encontrados na rua não queriam ocupar-se do caso. Finalmente, pelas duas da madrugada, chegaram os especialistas da polícia criminal, e levaram o sujeito. O governo me apresentou desculpas e regrets ao meio-dia, por intermédio do Belianski, que agora é ministro e chefe do Protocolo. Felicitaram-me pela minha “coragem”, mas não me enardeci[8] com isso. O homem se armara de faca e tive que jogar-me nele, para arrancar-lhe a arma. Depois, pedi perdão a São Francisco (imagem no meu quarto) pelo muito que malhei no assassino manqué.[9] Tudo está em ordem.
Arquivo pessoal Vasco Mariz.
[1] N.S.: Refere-se à obra de Mariz Villa-lobos: o homem e a obra, primeira biografia sobre o compositor, publicada em 1947 e que já teve mais de dez edições.
[2] N.S.: Nestor dos Santos Lima, embaixador que teve seu primeiro posto em Belgrado, de 1951 a 1954, ao lado do já veterano Ribeiro Couto.
[3] N.S.: Depois de seis anos em Belgrado, morando em residências inadequadas, Ribeiro Couto conseguiu, no final de 1953, alugar uma boa casa na rua Hilendarska, 9, No andar principal, instalou a área social, seu apartamento e quarto de hóspedes . No térreo, a chancelaria, com entrada independente pela rua Djure Danicica. Até hoje o endereço abriga a Embaixada do Brasil.
[4] N.S.: Sótão.
[5] N.S.: Expressão latina que significa “e o bando”.
[6] N.S.: Expressão francesa que significa “é claro”, “está visto”.
[7] N. S.: Josip Broz Tito, conhecido como marechal Tito, presidente da Iugoslávia de 1953 a 1980.
[8] N.S.: Do verbo francês enhardir, aqui no sentido de “não me entusiasmei com isso”.
[9] N.S.: Frustrado, falho.