Belgrado, 10 de março de 1957

Querido Didi,

Sabes o que é Belgrado. Pelo menos pelos jornais. Um sem parar de acontecimentos, tomadas de posição, polêmicas (pró ou contra os comborços), suposições sensacionais, decepções, esperanças, e outra vez acontecimentos etc. etc. A montanha-russa (sem trocadilho) no mais mecânico sentido da roda que gira. Como tenho uma embaixada a meu cargo, e não disponho senão de um secretário, e ainda por cima sou o decano do corpo diplomático – facilmente imaginarás onde me aperta o sapato.

Perdoa, pois, que só agora responda à tua carta de 22 de janeiro.

Antes de mais nada: ignorava o falecimento do teu genro Ivan Londres. Avalio a dor não só de sua filha Ruth, como a tua própria e a de dona Laura, com os quatro netos sem pai. Estas coisas não têm consolo. É tocar para diante, com os olhos úmidos.

Lamentei que não te demorasses em Paris em [19]56. Eu só tive permissão para gozar férias em julho. Escrevi-te para a Alliance Française, explicando isso. Deves ter recebido a carta. Muito lamentei também não ter visto a Irene, a pianista, que certamente se enriqueceu da experiência artística nessa viagem.

Agora, o Penumbrismo.

Quando publiquei O jardim das confidências, em 1921, o nosso saudoso Ronald de Carvalho escreveu um artigo intitulado “A poesia da penumbra”. Depois, nos Epigramas irônicos e sentimentais, ele publicou uma espécie de “arte poética” em que pergunta (referindo-se à poesia): “Quando serás penumbra?”.

Mas não se pode dizer que tivesse existido uma “escola penumbrista”. Eu cheguei de São Paulo em abril de 1918 com os originais do livro que, completado com algumas poesias mais, seria entregue a Monteiro Lobato & Cia em 1919, sob o título de O jardim das confidências. Livro em que há uma reação formal contra os clichês do parnasianismo. A linguagem nesse livro se identifica com os temas, que são melancólicos, contemplativos, um tanto doentios, brumosos – de acordo com o ambiente em que eu tinha passado três anos, de 1915 a 1918, em São Paulo (a dedicatória do livro é toda a chave do mesmo). O que havia de novo, se se pode falar de novidade, é a incorporação do cotidiano à poesia. Mas nisso mesmo eu havia sido antecipado por Marcelo Gama e Mario Pederneiras. Se eu cantava “assim”, é porque sentia “assim”. E por sentir “assim”, é que (como um caco de ferro atraído por um ímã possante) me liguei ao grupo de Fon-Fon!, ao grupo que correspondia às minhas preferências poéticas e à minha sensibilidade. A rigor, portanto, na fase “penumbrista” da minha poesia (a fase dos meus começos de vida como poeta) eu não sou mais do que um jovem companheiro daquele grupo – o grupo de Alvaro Moreyra, Felipe de Oliveira, Rodrigo Octavio Filho, Eduardo Guimarães, Paulo Godoy (cedo falecido), Antonius (cedo roubado à razão) e alguns outros. Os “antepassados” imediatos desse grupo foram: Zeferino Brasil, Marcelo Gama (o meu poeta, que menciono nos meus versos do Jardim), Mario Pederneiras (“Eu moro perto de uma vacaria…”)[1] etc. Sem o grupo de Fon-Fon!, eu não teria sido o que fui então, nem o que fui depois. Até agora sinto as minhas raízes pregadas naquele chão, naqueles peitos. Em todo caso, é verdade também que havia no “tom” das poesias desse grupo um certo “aristocracismo” (e mesmo o “aristocracismo” de moços ricos, ou que se davam ares de ricos, ao passo que eu passava muitas vezes fome, e recebia como maná do céu os 10 e 15 mil réis que o Alvaro Moreyra fazia o Para Todos pagar pelas minhas prosas de “Eduardo Sancho”, personagem inventado por mim, para caracterizar as minhas próprias nostalgias e “dolências”). A notar o seguinte: quando cheguei ao Rio em 1918, já o Alvaro não dirigia o Fon-Fon!, mas na historia literária do Brasil devemos considerar como “grupo Fon-Fon!” a ação daqueles poetas, transplantados para outras revistas (Para Todos, Illustração Brasileira). Nas linhas que aqui vão, improvisadas na máquina de escrever, reparo que deixei de mencionar o nome do Ronald de Carvalho. Ah, estas improvisações na máquina de escrever! O Ronald, como sabes, foi das figuras mais “marcantes” (como se diz no linguajar jornalístico) da geração do Fon-Fon!. Era, aliás, o “aristocrata da poesia” por excelência. A “Luz gloriosa” é o documento dessa “maneira de ser” e de “exprimir-se em poesia”.

O que eu trouxe de novo, se alguma coisa de novo quiserem reconhecer-me, foi uma série de “temas humildes” do “humilde cotidiano”. E isso com uma forma inspirada no Simbolismo, uma linguagem próxima de certa musicalidade, de tons imprecisos, reticentes, um certo smorzando que correspondia, sinceramente, ao meu modo de ser. Os meus dois livros dessa época, O Jardim das confidências e Poemetos de ternura e de melancolia, estão cheios desses temas, que eu sem provocação nenhuma, antes por natureza, opunha a Cleópatra e os templos gregos (Parnasianismo) e aos “canais de Bruges” (grupo Fon-Fon!). Eu trazia ao canto natural do poeta os temas da rua e da estrada – a moça da estaçãozinha pobre, a chuva na velha praça, o serão em família, os meninos de roupa nova que vão ao cemitério com as mães no dia de finados, o enterro do afilhadinho do senhor vigário no arraial, a menina gorda que se olha no espelho, o bar (em que Milonguita não apareceu em certa noite), enfim, uma porção de coisas que já existiam mas que ainda não eram temas “nobres”. Contra o tema “nobre”, eu opus (na linguagem discreta dos meios tons, da penumbra em que eu próprio vivia) os “temas cotidianos”, os temas da vida e ao alcance do olhar de qualquer um, caixeiro de venda ou pequeno funcionário, qualquer “homem na multidão”.

Alguns poetas sentiram o que havia de insólito e real, de vivo e poético, nesses temas. Mesmo poetas mais velhos do que eu, como o nosso grande Manuel Bandeira, que então havia publicado A cinza das horas (onde o “cotidiano” se manifesta já, “Mamãe não avisou se vinha/ Se ela vier, mando matar/ Uma galinha.”), em 1917, e publicaria em 1919 o Carnaval. Só no Ritmo dissoluto, começado a escrever depois de 1919 e publicado em 1924 com as Poesias é que o mestre (“Meninos carvoeiros”, “Balõezinhos”) daria ao “cotidiano brasileiro” a sua esplêndida força poética. Uma vez, em Pouso Alto, em 1925 ou 1926, na casa de 40 mil réis por mês em que eu então morava, Manuel foi passar umas semanas comigo, como fizera em Campos do Jordão e continuaria a fazer. Decidimos apontar o que é que cada um de nós, em suas respectivas obras poéticas, devia ao outro. Eu devia muito a Manuel Bandeira (desde que lera numa revista de São Paulo em 1917 a poesia “Cartas a meu avô”, incluída na Cinza das horas); ele, por seu lado, dada a nossa fraterna convivência na rua do Curvelo, em 1918 e nos três anos seguintes, reconhecia que também me era devedor de alguma coisa. Mas não acertamos nas indicações propostas. “Isto aqui é seu, isto aqui é meu”, e por aí fomos, folheando os nossos livros. A mim ele atribuía o que era dele; a ele eu atribuía o que me parecia meu. Em todo caso, havia uma dívida recíproca, e um balanço a levantar.

Não foram, entretanto, os temas do “cotidiano” que fizeram falar de uma “escola penumbrista”, e sim um certo jeito, um tom, um clima de expressão poética. E isso era de pouca importância. O importante (e penso haver contribuído para tal em minha modesta obra, tanto nos mencionados livros como nos que lhes sucederam) era a incorporação da vida vivida, a rua, os quintais, o quarto do estudante Batista, as pombas voando quando passa o trem do subúrbio, a mulher do bar (Milonguita), o amigo que em segredo ama a irmã do amigo e na cara do outro revê a amada, o pudor das aspirações obscuras, a mãe fatigada que espera o filho boêmio altas horas da noite, o rumor de passos na rua deserta, enfim a vida de toda gente, a dignidade do cotidiano autêntico, natural, humano, sem nenhuma ênfase e nenhuma oratória.

Mas não foi isso que “pegou” como “Penumbrismo”. Como “Penumbrismo” se entendia, por volta dos anos 1920 a 1923, uma certa atitude reticente, vaga, imprecisa, nevoenta, no jeito de escrever versos.

Confia-me uma vez Rodrigo Mello Franco de Andrade que possuía de Carlos Drummond de Andrade um manuscrito inédito, um manuscrito de versos daqueles anos, intitulado Os 25 poemas da triste alegria.[2] Penumbrismo. Fez muito bem Carlos Drummond de Andrade em não publicar aqueles versos, que provavelmente nada acrescentariam à alta obra que escreveria depois.

Numa palavra: o Penumbrismo não foi uma escola. Melhor ainda: do ponto de vista formal, tudo o que se pode apontar como penumbrismo não passou de um passageiro “contágio”. De resto, como escreveu Jean Cocteau no Manual profissional, “não há escolas, há poetas contagiosos”. (Cito de memória).

E eis aqui, meu caro Didi, tudo quanto por agora te posso dizer, e que podes publicar integralmente. Não tenho nenhum orgulho de haver, em certa fase da minha vida (a fase inicial pelo menos), “contagiado” alguns poetas, uns grandes, outros pequenos, outros intermediários. Eu próprio sou um “contagiado”. Nada me é mais grato do que proclamar as “influências” que recebi na minha formação, e espero em Deus continuar a receber. Sobre “influências”, teria muito que escrever. Segundo a minha experiência, a maio[r] ou a melhor de todas não é a que vem de um livro inteiro, mas sim às vezes de um pequeno poema, e até mesmo de um só verso. “Les sanglots longs de l’automne…”[3]

Teu, com o velho coração penumbrista,

Saudosamente,

Ribeiro Couto

Arquivo Ribeiro Couto / Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa.

[1] N.S.: Primeiro verso do poema “O fado”, de Raul Pederneiras.

[2] N.S: O livro seria publicado pela editora Cosac Naify em 2012.

[3] N.S.: Referência ao poema de Verlaine “Chanson d’automne”, cujos primeiros versos são: “Les sanglots longs/ des violons/ de l’automne”.