Rio de Janeiro, 1966
Querido Jomard,
Estive aqui folheando lentamente o teu livro[1] e lhe asseguro que vou ler com o maior interesse, porque já vi que você fez um estudo inteligentíssimo sobre nossa Cultura! e sobretudo porque descobri, num relance, que os autores citados por você, revistos e essencializados! dão mesmo uma Visão brasileira, complexa, contraditoriamente subdesenvolvida — e tudo assim continua mesmo depois do Golpe, quando nós nos vimos traídos, quando não sabemos bem quem e como surgiu esta nova época, quando a outra era tão promissora. O quanto aprendemos, eis o vero.
Sua carta, suas notícias, tudo isto é muito bom; preocupei-me muito contigo, não sabia onde estavas e só agora soube da prisão[2] e que outra vez estavas livre e trabalhando; foi tão estranho nosso último encontro, você ficou num grande silêncio realmente, a minha casa desmontada, tive a impressão de que tínhamos envelhecido e que, pelo menos eu, já estava sofrendo da antonionesca moléstia da incomunicabilidade. Depois da sua visita eu viajei com Deus e o diabo…,[3] veio a queda de Jango, eu voltei com tudo mudado e as pessoas dispersas, desmoralizadas, tristes. E eu fui acometido da mais brutal crise de toda minha vida: no momento em que assumi uma profunda visão dos problemas políticos acumulei uma total desilusão sobre os sentimentos — e uma coisa ficando na dependência da outra me levou a tamanha fossa, como se diz na ipanêmica gíria, que pensei em emigrar até para Hollywood, até pensei inclusive em me demitir da terra e dos ofícios e lhe confesso que não estou ainda bastante curado — ando cheio de decepções, de muitas dívidas, de um cinema ingrato, de tudo na estaca zero depois de tantos anos de luta, da Paloma crescendo sem ter direito onde morar, de minha mãe cada vez mais nervosa, da loucura que domina o asfalto, do individualismo hipócrita coletivo do carioca, da vigarice intelectual, da parada no sucesso das letras e artes, do esquerdismo visceral e bossal, do direitismo monstruoso e corrupto, das migalhas comunistas que muitos comeram sem saber por quê, da confusão tão primária entre alienação e participação e da miséria de não ter dinheiro, de ter que resistir para não se negar, de ter que ir levando, pensando e sofrendo e a cada instante querendo morrer e ser então assaltado pela esperança, pelos deveres, pelos processos e pela responsabilidade!
Posso lhe dizer que nada mais lhe digo além disto: que tua carta me emocionou e a única coisa boa deste filme é sair na hora e vingar as pessoas e responder à brutalidade — mas o povo não entende, o povo vaia e apedreja, e eu fiz para o povo — imagine que mito besta é o povo. A gente envelhece, caríssimo, descobrindo-se amargo e querendo a mesma paz da paz do mineiro Drummond, e quer emigrar para a Flórida ou para as ruínas de Roma, ficar tomando sol e ganhando dinheiro fácil.
O que vai por aí neste distante Pernambuco do Recife? Como aguentas a província brutalizada, a lama do subdesenvolvimento, o feijão, o angu, as velhas lotações, as estradas sujas, as ruas esburacadas, as moças sonhadoramente ansiosas na longínqua maquilagem, a brutalidade adolescente dos rapazes, os velhos latifundiários, o arrivismo, os jovens poetas sinceramente dispostos a tudo salvar? Ah, meu querido, como tens mais resistência do que eu, tens a divina paciência para o magistério, a calma sacerdotal dos justos e dos puros! — eu não suportaria ver os tanques, as bandeiras, as flores pátrias, nada.
Como você vê, estou amargo e gongórico.
Aqui te deixo, espero uma carta sua, que poderei responder ou não brevemente. Mas escreve falando de você e de tua vida.
Um abraço fraternal do seu amigo
Glauber
Glauber Rocha. Cartas ao mundo. Organização de Ivana Bentes. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 267-269.
[1] N.E.: Glauber refere-se ao livro Do Modernismo à Bossa Nova, Ed. Civilização Brasileira, 1966, que prefaciou.
[2] N.E.: Jomard foi preso com a equipe do professor Paulo Freire, em 1964.
[3] N.S.: Deus e o diabo na terra do sol é filme de 1964, dirigido por Glauber Rocha. Foi indicado à Palma de Ouro do Festival de Cannes.