Rio de Janeiro, 8 de novembro de 1957

Caríssimo general,

Ontem terminei um quadro que me custou muito trabalho. Trata-se de uma tela grande.[1] Mede 1,50m x 0,53m – retângulo áureo – onde alinhei uma porção de latas, garrafas, laranjas, enfim, os meus brinquedos de sempre. Trabalhei nesse quadro mais de um mês, gastei uma pequena fortuna em tintas. Mais de uma vez, voltei tarde para casa, depois de me extenuar horas a fio, em botar e tirar uma cor que não se ajustava. Tu sabes, isso me acontece frequentemente. O final dos meus quadros é sempre dramático. Fico refletindo no que disse na Para Todos o pintor tcheco Arnost Paderlik, que veio para a Bienal, referindo-se à minha pintura. Entre outras coisas, comentou: “[…] colorista respeitável, que chegou à madureza no domínio dos segredos do seu métier […].”[2] Segredos do métier, aqui está uma coisa que não compreendo. Quando encontro uma dificuldade, e isso acontece frequentemente, procuro valer-me do disco das cores. Vejo, então, que esse não me serve para nada. Aí apelo para outros conhecimentos e também não acho nada que sirva. Sinto-me só e ignorante diante da tela, como um estudante de belas-artes. Só o instinto me guia. Fui procurado por um jovem que me pediu conselhos. Pediu-me também para que lhe deixasse ver como trabalho. Consenti. O resultado foi que ele viu um homem que se desesperava, inutilmente, a procurar uma cor para o fundo do quadro, ou melhor, para uma pequena parte do fundo. Grande lição! Mas eu creio que lhe disse uma coisa certa. Foi isso: o esforço é o mesmo, para quem sabe, como para quem não sabe. Há só essa pequena diferença: aquele que sabe termina acertando, e aquele que não sabe, jamais. Meu caro general, seria também absurdo concluir como certos pintores, que dizem que a criação é um salto no escuro. A verdade está no meio. Não me lembro desse Veronese que estás copiando. Recordo outros, belíssimos de cor, que vi na Itália. Predomina neles um ocre verdoso, quente, às vezes chapado. Aproveita essa gente o mais que puderes. O caso da tua gravura é estranho, vou pedir explicações ao Raul, que é mestre em causas do outro mundo. Falei com Beatriz. Ela me entregou o livro e o verniz. Eu te agradeço muito essas coisas. Depois que foste para Paris, eu não fiz mais gravura. Tu tens me feito muita falta. Eu escrevi, aconselhado pelo Erico [Verissimo], ao Sicre,[3] diretor da seção de artes visuais da União Pan-Americana, pedindo-lhe que fixe uma data certa para a minha exposição, em 1958.[4] Eu já estou cheio com tudo isso. A asiática[5] andou por aqui, também me pegou; mas foi fraca, felizmente. A grande novidade são os satélites russos. Eu estou muito satisfeito com isso. Os americanos estão apavorados, levaram um bruto cagaço. E tudo por terem a mania de serem os maiores e únicos. O Pena Boto, ou melhor, o apenas boto, anda alucinado com o perigo comunista. Isso aqui continua uma desgraça, tudo se agrava. Nada tem solução, acontecem as coisas mais absurdas. Respira com força esse ar da Europa e te regozija por poderes estar aí. Junto vai “O colchão”[6] que foi traduzido e publicado ontem na Para Todos. Quando voltares, poderemos pensar no filme. Demorei um pouco em responder-te porque estava todo metido no quadro que acabei, e numa outra história que estava escrevendo. Vou parar por aqui, a letra já está ficando que não se entende. Manda notícias.

Maria e eu te abraçamos afetuosamente

Iberê

Bem traçadas linhas: a história do Brasil em cartas pessoais. Organização de Renato Lemos. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2004, pp. 391-392.

[1] N.S.: Trata-se de Painel com garrafas, da coleção de Gilberto Chateaubriand, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
[2] N.S.: Trechos suprimidos na edição-base.
[3] N.S.: José Gómez-Sicre (1916-1991) foi diretor da seção de artes visuais da União Pan-Americana de 1948 a 1976.
[4] N.S.: A exposição Iberê Camargo of Brazil, aconteceu em Washington, Estados Unidos, em 1959.
[5] N.S.: Epidemia de gripe que teve início no Norte da China, em 1957, e se espalhou pelo mundo.
[6] N.S.: Conto de Iberê incluído em No andar do tempo, de 1988.