Rio [de Janeiro], 7 de junho de 1945

Hélio,

Vou te escrever uma carta amanhã. Uma carta mesmo de verda­de, para o Murilo [Rubião] levar. São três horas da manhã, estou cansado.

Fiquei comovido com sua Carta-Poema. Você é um grande poe­ta, um grande amigo, um grande sacripanta.[1]

É engraçado, Hélio, não há meios de segurar o tempo, e eu queria atravessá-lo diagonalmente — violentar o tempo, resistir à sua torrente, deixar-me ferir de frente pela sua aspereza cheia de tantas contradições. É esquisito, é inacreditável, é antes de tudo tão comovente, como nós quatro tivemos ao mesmo tempo a cons­ciência de um instante em suspenso entre o que deixou de ser e o que será de agora em diante. O Otto [Lara Resende] me escreveu, dizendo que daqui a dois meses perguntarão, atônitos: “Mas você viveu mesmo na época do Roosevelt? Você conheceu o Mário de Andrade? Con­versava com ele, batia nas costas dele, ouvia a fala mansa e pene­trante que ele tinha?” O Paulo [Mendes Campos] me escreveu dizendo que um tempo se encerrou e restará esquecido, chegou a hora de inaugurar os tempos novos, se preparar para eles, que eles chegaram com o fim da guerra ou sem o fim da guerra, com justiça ou sem justiça, com a morte do Mário ou sem a morte do Mário, eles chegaram para nós. E você escreveu este poema, Hélio. Eu escrevo o meu livro me debatendo, projetado infinitamente contra o tempo, matéria morta, para que ele desapareça de uma vez, consumado o nosso impiedoso desgaste. Ou então que vivifique, para podermos respirá-lo e nele nos enriquecermos.

Há uma luta de todas as horas contra o tempo que nos aniquila, Hélio. Uma agonia de quem quer achar o instante sem tempo naquele que é a Agonia ela mesma. Mas existe este instante, um instante ape­nas, em suspenso para além do tempo e para além da morte, estou sentindo agora — e é por sentir que eu procuro. Há qualquer coisa de comovente, perceba, que me faz sofrer tanta angústia jovem neste ins­tante, trazer o coração tão cheio agora de uma alegria triste. Há qual­quer coisa de comovente nesse encontro de nós quatro assim de longe — tão longe que estamos um do outro, você do Paulo, o Paulo do Otto, o Otto de mim, e no entanto tão juntos, que nossa respiração se confunde, nossas mãos se tocam no ar e há um resto de doçura no olhar de cada um, que é a lembrança dos outros três: Hélio, somos quatro e aqui estou perto de você, como numa noite sentados no meio-fio da avenida Bias Fortes, lembra? Como aquela cervejinha do Bar Cinelândia, a conversa entre nós dois, o Paulo e o Otto pairando. Tive pena de você um dia na casa do Eloy,[2] achei você tão triste, você não sabia. Te admirei naquele dia do parque em que treinamos um discur­so perto do lago, achei você senhor de mundos e fundos, de estrelas e potestades como eu não era capaz. Tive vontade de dizer e não disse que te estimava feito um irmão naquele dia em sua casa que você me mostrou o artigo sobre os católicos. Achei que você era esse irmão, no dia em que me ajudou a sair da Igreja do Santo Antônio, quando eu havia sido operado — não falei nada.

Em cada palavra que não disse, em cada gesto de amizade que deixei de fazer, em cada encontro, quando as noites se findavam e as mulatas eram raras em detrimento de nosso priapismo insaciável — em cada olhar, em cada discussão, até em cada um dos argumentos matreiros que eu usava — em tudo houve, tenho certeza, um desejo de compreender e de estimar, de dizer que é assim mesmo, afinal estamos juntos, somos os mesmos, pensamos a mesma coisa. Pois tudo isso está aqui agora, escorre liquefeito em ternura, quebrando a rigidez alvar e burra deste papel e da distância. Hélio, o tempo agora é outro, a infância se recusa a renascer dos olhos e das mãos, se esconde, se aprofunda, somos homens, é preciso ir buscá-la por um caminho que será bem longo.

Parei a carta aqui, fiquei ouvindo um chorinho manso, vindo do quarto aqui ao lado — é minha filhinha chorando. É a coisa mais linda, mais — nem sei dizer — mais desesperadamente bela e triste: é de doer o coração a filhinha da gente chorando. Eliana está cada vez mais linda, nem três meses de nascida, ainda não sabe fazer nada, tem narizinho arrebitado, chorinho manso, olhinhos vivos, é uma coisinha se mexendo no berço — é minha filha… Quando você tiver uma filha — ou, vá lá, um filho (convém casar primeiro) vai ver que nem sempre é porém a toada da onda que vai e que vem…[3] Estou cansado, vou dormir.

Hélio, não tenho tempo de acabar esta carta. Já estou no dia se­guinte, chegou a hora do Murilo Rubião ir embora. Passei a manhã com o Tristão [de Athayde], Murilo Mendes, [Gustavo] Corção e Edgar: estamos tratando de um semanário católico que fundamos, junto com uns alunos de Faculdade de Filosofia daqui: Murilo será o diretor. O jornal será em forma da “Mensagem”, não terá compromisso com a ação católica nem com o catolicismo oficial, nem com partidos políticos. Será combativo den­tro desse espírito, apenas rigoroso sob o ponto de vista dogmático. Será mais ou menos o Murilo Mendes em forma de jornal — para você fazer uma ideia. Falei de vocês três, estão contando seriamente com uma colaboração. Parece que a coisa é boa, justamente aquele jornal que nós aí tanto queríamos fundar. Vamos ver.

Você é mesmo uma besta memorável. Onde está a ordem para eu receber em seu nome? Os cinquenta mil-réis já recebidos sem ordem nenhuma vou ver se mando junto com esta — vou ver ainda, não tenho certeza se vale a pena, se você merece.

O Otto me escreveu dizendo que teve uma discussão com você. Respondi dizendo que ele tinha razão e você estava errado, mas quan­do falei você, evidentemente que me referia ao você que ele me pin­tou na carta, um Hélio tresandado, tresnoitado e tresvariado.

Já te contei que vou para os Estados Unidos? Bem, depois te conto, que agora o tempo é pouco e tenho outra coisa para falar: escrevi ao Otto sobre uma viagem a Ouro Preto, você topa? Estou pensando em dar uma fugida depois das provas na Escola se o cartó­rio permitir (tenho um escrevente que ficou doidinho de uma hora para outra, pensa que sou sobrinho do General Dutra). Estou preten­dendo ir a Ouro Preto por uma semana, seria do cacete se vocês três fossem também. Passaríamos quatro dias mentecaptando por lá, um para cada mentecapto: pilequinhos discretos em homenagem aos inconfidentes, ladeiras inescaláveis, igrejas no mais tardar, puxare­mos angústias enormes como carros de bois. Me escreva rápido, honesto e telúrico sobre isso, para prepararmos tudo. Vê se conven­ce os outros dois. Mas me escreva logo, não me deixe ficar curtindo a ideia se ela não for realizável.

Meu livro vai indo, já terminei ele quinhentas vezes, estou na quinhentas e uma. Parece que vai. A conferência sobre o Mário foi feita para gente que praticamente nem sabia quem era o Mário, por isso foi difícil fazer coisa boa — em Ouro Preto te mostro (se houver Ouro Preto).

Sua Carta-Poema é a melhor coisa que você já fez, não tem dúvi­da. A parte do Paulo, então, é genial e a do Pajé[4] tão bonita, a minha me comoveu até as lágrimas. Tenho algumas sugestões para você consertar uns versos, mas só pessoalmente.

Diga ao Paulo que continuo vendo o emprego dele aqui no Rio: tudo assim muito vago, só porque ele não está aqui, se ele viesse já estaria arranjado.

O livro do João Cabral saiu hoje na coleção do Schmidt, agora sairá o do Vinicius. Seria excelente sair o seu também, vê se manda o mais rapidamente os poemas para eu mostrar ao Schmidt, que ele publica na certa. Não deixe de mandar, mesmo que esteja desorgani­zado. E além dos poemas que não conheço, mande também aqueles que você leu no parque para o Otto e para mim, quero ver de novo.

O Murilo está de partida, a conduzir gloriosamente sua careca para Curral del-Rei — depois de inconstitucionalíssimas discussões comigo, nas quais o maupassante, o cáfica, o poi e o servantes[5] não deixaram de fazer misérias. Coitado do Murilo, eu gosto muito dele.

Coitado do

Fernando

P.S.: Mande:

— ordem de recebimento

— os poemas

— solução viável para o caso ouropretano

— perguntas sobre meu livro

— abraços, saudades e pororocas.

— Escrevi ao Paulo e ao Otto duas cartas colossais. Recebe­ram? A besta do Otto ainda me chama de crápula. Estou vendo o Pajé, braços levantados, como um gigantesco Y com o corpo. Será Yone? Será ginástica? Serafim?

— O nosso Carlos Lacerda se converteu ao catolicismo, acho. Para variar, foi comigo almoçar no Mosteiro São Bento.

Fernando Sabino. Cartas na mesa. Rio de Janeiro: Record, 2002, pp. 56-60.

[1] N.S.: Velhaco, patife.
[2] N.E.: Eloy Heraldo Lima, fraternal amigo que de certa maneira fazia parte ativa de nossa turma.
[3] N.E.: “A vida nem sempre é, porém/ Toada de onda que vai e que vem” – Versos de Carlos Drummond de Andrade (ou de Mário de Andrade? – surgiu-me a dúvida).
[4] N.S.: Pajé era o apelido de Otto Lara Resende no grupo dos quatro mineiros.
[5] N.E.: Guy de Maupassant, Franz Kafka, Edgar Poe e Miguel de Cervantes, autores da predileção confessada de Murilo Rubião, e assim frequentemente citados por ele em nossas conversas.