Os questionamentos que os colegas de turma da inglesa Christina Lamb faziam na Universidade de Oxford, onde ela se graduou em Filosofia e Política, não lhe interessavam. Nascida em Londres em 1965, mal pegou o diploma viajou para o Afeganistão, invadido em 1979 pelas tropas soviéticas para depor o presidente Hafizullah Amin num conflito que castigaria o país por dez penosos anos.
Foi, portanto, em 1987 que desembarcou em Kandahar, cuja sonoridade do nome a encantou bem antes de ela pisar no chão dessa cidade do sul do país, e a segunda maior, fundada por Alexandre, o Grande, em 330 a.C. Estava com 21 anos, a certeza de que venceria qualquer perigo e o desejo de ver um mundo que não era olhado com atenção. Mais que isso: um “campo de batalha e cemitério do mundo”.
Ao saltar da garupa de uma motocicleta que a transportara até lá, Christina botou o pé numa terra de planícies rochosas, de onde se viam montanhas avermelhadas, altíssimas, fechando o horizonte. Naquele final da década de 1980, ainda não se falava no Talibã, e Mikahil Gorbachev, presidente da então União Soviética, indicava o fim da guerra que já durava dez anos e que, de fato, terminaria em fevereiro do ano seguinte.
“Kandahar foi onde tudo começou”, escreve ela em Cartas de Herat: meus anos no Afeganistão, Editora Novo Século, 2006. Encontrou no país um lugar onde a terra e a família eram o que verdadeiramente importava, assim como a disponibilidade para olhar a neve ou uma flor; “onde as pessoas não tinham nada, mas davam tudo” – avalia depois de dois anos morando lá.
Em 1990, de volta a Londres de Margareth Thatcher, deparou com a ambição, a mesquinhez, a pressa, mas não foi difícil fugir da insipidez reinante porque a vida de correspondente de guerra a tiraria da capital inglesa para levá-la a outros países e continentes. Ainda assim, sentia falta do Afeganistão, que, concluiu, se transformara em seu “caso de amor”. Um caso que se somaria a outros dois amores: o jornalista e escritor português Paulo Anunciação, com quem se casaria, e Lourenço, o filho que os dois teriam.
Por algum tempo a vida parecia calma até que, em minutos, tudo mudou: o Afeganistão, dessa vez invadido por tropas americanas em busca de Osama Bin Laden depois do ataque às Torres Gêmeas de 11 de setembro de 2001, entrava em mais um conflito que se estenderia por duas décadas. Christina, àquela altura mãe de um menino de dois anos de idade, seguiu para o país de seu coração pela segunda vez, como correspondente do Sunday Telegraph.
Haviam se passado doze anos desde que lá estivera, e instalou-se não mais ao sul, onde ficava Kandahar, mas em Herat, a oeste do país, já perto do Irã. Na semana anterior à sua chegada, Herat tinha sido abandonada pelo Talibã, que também deixaria Cabul para a Aliança do Norte logo em seguida.
Herat sempre foi conhecida pelo seu misticismo e por ser o berço da civilização afegã. Dominada pelas torres altas e finas dos minaretes, encimando as mesquitas, alguns de 300 metros de altura em ladrilhos turquesa, azul e opala, fez a jornalista lembrar imediatamente das palavras do viajante inglês Robert Byron em seu The Road to Oxiana. Ele afirmara que o esplendor de tanta beleza jamais seria destruído por completo: “Aqui está a Ásia sem complexo de inferioridade”, sentenciara, e agora ela comprovava a verdade da frase.
O que Christina não esperava era que, nessa cidade, receberia cartas de uma moça, moradora de Cabul, contando-lhe os horrores vividos pelas imposições do Talibã. Seu nome era Fatema Siddiqui, mas, para não ser identificada, pedia que fosse chamada de Marri. Soubera da presença de Christina em Herat por meio de um conhecido que, portador da correspondência, descia pelo Paquistão para entregar as cartas a Christina em Herat. Em 24 de setembro de 2001, escrevia Marri:
Soube por nosso amigo que você tem um marido gentil e um belo filho, e viaja pelo mundo fazendo reportagens e conhecendo pessoas. Meu sonho é viver assim. É estranho pensar que vivemos sob o mesmo céu azul e mesmo assim parecemos estar separadas por 500 anos de história. […] Quando o Talibã chegou a Cabul, era setembro de 1996, eles nos mandaram ficar dentro de casa. Anunciavam essa ordem no rádio, assim como a de que teríamos de usar as burcas. Eu nunca tinha usado uma antes, era coisa das cidades pequenas. Era como se não pudéssemos respirar ou enxergar, víamos apenas por aquele quadrado, como se fosse uma jaula, e no verão era quente e o sol nos cegava. Desmaiei duas vezes no primeiro dia.
Em nossa casa, por trás das burcas e túnicas, usava um vestido rosa de festa. Era da minha mãe, do tempo em que o rei estava no poder e meu pai era do Ministério das Relações Exteriores. Às vezes eu olhava para ele e me imaginava dançando, mas isso era um outro mundo. Agora temos de usar roupas que nos tornam invisíveis e não podemos nem usar saltos. […] Fazemos nossas pequenas rebeliões. Talvez você não saiba que somos proibidas de usar maquiagem embaixo da burca, mas eu tenho um batom vermelho. Uma das minhas amigas tem um salão de beleza secreto em seu quarto.
Não sei se você quer que eu escreva. Só sei que se começar a escrever vou preencher muitas páginas e meus olhos vão se encher de lágrimas porque, nestes sete anos de regime Talibã, ninguém nos pediu para falarmos de nossa vida.
Entre as atrocidades do Talibã, Marri, filha de um ex-diplomata e de mãe professora, destaca o fechamento de escolas e faculdades, a proibição de ensinar crianças a ler, mesmo fora da escola, o medo constante que fazia famílias se mudarem para cidades menores, ou para o Paquistão, sem que pudessem carregar seus pertences, muitas vezes abandonando toda uma história de vida. Como jovem de 22 anos, ela enfatiza o sofrimento das mulheres, obrigadas a esconder, sob a burca, a sua beleza e feminilidade.
Reproduzidas em Cartas de Herat, as missivas são testemunho da violência do Talibã e dos danos de sua crueldade sobre um povo amante da cultura e das artes. Mas são também a prova de coragem de mulheres como Fatema, cujos relatos impressionaram Christina Lamb e a despertaram para uma causa específica: a das condições de mulheres em países em guerra, tema de que passaria a tratar na sua carreira de escritora hoje detentora do Prix Bayeux-Calvados, o mais prestigioso prêmio europeu concedido a correspondentes de guerra.
Não foi menor a surpresa da jornalista ao descobrir, em Herat, um movimento de resistência que, como numa teia, se espalhava pela cidade, camuflado sob o nome de “O Círculo das Costureiras de Herat”. Por trás de uma placa em que se lia “Agulha de ouro, aulas de costura para senhoras, segundas, quartas e sábados”, ocultava-se uma rede subterrânea de escritoras e poetas que davam aula de literatura a mulheres. Elas ali chegavam trazendo cadernos e canetas escondidos sob tesouras, cetim e outros materiais de costura. Na grande sala, despiam as burcas e se sentavam gostosamente em almofadas para assistir a aulas sobre poesia persa e clássicos estrangeiros como Shakespeare, James Joyce ou Nabokov.
Mas nem mesmo a alegria de ver um movimento como esse florescer fez com que Christina Lamb desistisse de procurar Fatema. Depois de incontáveis tentativas, as duas finalmente se encontraram em New Microrayon, condomínio residencial na zona leste de Cabul, ocasião em que a jovem afegã entregou seu diário à visitante – mais um documento valioso sobre o cotidiano feminino durante conflitos.
Cartas, diário e experiências provocaram a indignação de Christina Lamb, que se levanta contra a tirania de que são vítimas as mulheres, dando-lhes voz também, o que resultaria num outro livro: Nosso corpo, seu campo de batalha (Our bodies, their battlefield), lançado neste 2023, pela Companhia das Letras. Versa sobre campos de refugiados para mulheres vítimas de estupro em guerras, que se distribuem em alguns países da Europa – para espanto da jornalista, e meu, apenas em 1998 houve a primeira ação penal reconhecendo o estupro como crime de guerra.
É preciso coragem para ler as transcrições dos depoimentos de mulheres violentadas nas quase 500 páginas de Nosso corpo, seu campo de batalha, sobretudo quando se tem notícia de que esse tipo de crime continua a acontecer na guerra que há mais de um ano devasta a Ucrânia. Paralelamente, e para horror de todos nós, o pesadelo no Afeganistão voltou em 15 de agosto de 2021, quando o Talibã retomou o controle de Cabul, em resposta à decisão de Joe Biden de retirar as tropas americanas de lá depois de 20 anos de ocupação. A consequência da nova gestão do grupo fundamentalista é medonha: há o que está sendo considerado pandemia de suicídio de mulheres, vencidas pelo desespero que já atinge gerações, conforme mostra um contundente documentário recentemente exibido pela BBC e comprova a importância das denúncias de Christina Lamb iniciadas há três décadas.