Um dos aspectos ainda pouco estudados sobre os modernismos no Brasil é a sua relação com as entidades estudantis ligadas à nascente vida universitária. Nos anos 1920, o mesmo da realização da Semana de Arte Moderna, vimos aparecer a então Universidade do Rio de Janeiro, a UFRJ, e na década seguinte, da chamada Revolução de 1930, início da Era Vargas, surgiu a Universidade de São Paulo, a USP. As duas principais instituições de ensino superior do país não colecionam apenas histórias de formaturas, ampliação de seus espaços como celeiros da produção de conhecimento e consolidação dos mais diversos campos do saber, nacional e internacionalmente, mas também se entrelaçam a um momento de grande efervescência cultural, social e política no país. Estudantes dessas e de outras instituições estiveram também engajados, muitas vezes a partir delas, em promover mudanças no modo como se faz e se pensa o Brasil por meio da arte e da cultura.

As cartas de Mário de Andrade, nesse sentido, foram decisivas. O “correspondente contumaz” fez da correspondência um de seus principais meios tanto de exercício crítico e criativo quanto de construção da sociabilidade modernista, tornando-se, portanto, sua “rede social”, dispositivo fundamental para a maturação dos pressupostos programáticos dos modernismos. Não por acaso, costuma-se afirmar que o movimento modernista não seria o mesmo sem as cartas de Mário de Andrade. Elas funcionaram como elemento integrante e propulsor das dinâmicas estéticas, sociais e políticas para constituição do modernismo como movimento cultural, para fazer aqui referência ao incontornável estudo dos sociólogos André Botelho e Maurício Hoelz, publicado em 2022. 

O autor de Macunaíma também era conhecido pela sua generosidade intelectual e afetiva com os mais jovens. Não eram poucos os que o procuravam, seja pedindo orientações sobre criação literária, seja buscando seu apoio em alguma empreitada artístico-cultural, ou ainda estabelecendo também uma aproximação, com algum embate de ideias. E quando falamos de um correspondente como Carlos Lacerda, esse embate tomava, muitas vezes, contornos quase bélicos. Mas foi também uma relação de admiração e de respeito. As cartas trocadas entre os dois nos descortinam não apenas a construção de uma amizade, mas também a articulação de ideias sobre os rumos do Brasil, tendo a literatura e a cultura como bússola.

Ainda adolescente, Carlos Lacerda foi encarregado de colaborar na coluna sobre educação de Cecília Meireles, no Diário de Notícias. A poeta de Romanceiro da Inconfidência ficou admirada com a inteligência do rapaz, fortalecendo o vínculo intelectual e afetivo entre os dois. No ano seguinte, Carlos ingressou no curso pré-jurídico da então Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, para, em 1932, obter a matrícula na formação regular, que duraria cinco anos. Mas nunca o completou. Contudo, a atuação como estudante foi fundamental para sua trajetória política e intelectual. Foi apresentado a Ana Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça, fundadora e presidente da Casa do Estudante do Brasil, primeira entidade estudantil em âmbito nacional, cujo objetivo era oferecer auxílio aos estudantes universitários que precisavam se deslocar de suas cidades para frequentar os cursos superiores na capital federal, do alojamento à alimentação. 

A CEB foi criada no dia 13 de agosto de 1929, no Rio de Janeiro, por estudantes de todas as instituições de ensino superior do Distrito Federal e representantes das escolas naval e militar. A assembleia de fundação da CEB ocorreu na sede do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira (CACO), da Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro. Ana Amélia foi escolhida nessa sessão a sua presidente e Pascoal Carlos Magno, secretário. Nos anos 1930, obteve subvenção do governo de Getúlio Vargas para promoção de atividades da CEB, entre elas uma publicação mensal. Assim, nasceu a revista rumo, da qual Lacerda viria a ser não apenas editor, mas também frequente articulista, redator e ilustrador, contando também com Rui Costa e M. Braga de Carvalho como redatores. 

Nasce o rumo

Para a primeira edição, lançada em maio de 1933, Lacerda pediu a colaboração de Mário de Andrade, já então uma das figuras mais relevantes do modernismo e do cenário cultural daquele tempo. Portanto, a reverência da primeira carta dirigida ao autor de Macunaíma não é inesperada: “Ilmo. Sr. Mário de Andrade,/ rumo, publicação mensal do Serviço de Publicidade e Divulgação da Casa do Estudante do Brasil, iniciou, com a publicação do primeiro número, em maio, inquérito entre intelectuais para saber quais os 20 melhores livros brasileiros, de todos os gêneros”. Era maio de 1933. O endereço de Mário de Andrade provavelmente foi fornecido por Rosário Fusco, escritor do Grupo Verde, de Cataguases, com quem já se correspondia há mais de uma década e tinha bem estabelecida uma amizade. Fusco era membro da CEB e colaborava com a divulgação e outras atividades da revista. 

O periódico, como a maioria das publicações do gênero, não sobreviveu por muito tempo em sua primeira fase. Após discordâncias com Ana Amélia, em 1934, Carlos Lacerda levou a revista para o escritório do recém-formado advogado Evandro Lins e Silva, que passou a integrar a redação com Lacerda e Moacir Werneck de Castro. A ideia era avançar ainda mais com a publicação, mas ela só durou até a edição nº 9. O editorial do primeiro número já dava o tom da revista, com uma longa defesa da universidade brasileira e de seu papel social na construção do país. Os seus textos buscavam, assim, contemplar essa missão. Portanto, aquele contato inicial com Mário de Andrade era um passo importante nesse sentido. Mesmo que a revista não tenha durado tanto tempo, não se pode perder de vista a importância da relação entre Mário, a entidade estudantil e os seus eventuais integrantes, como Carlos Lacerda.

A partir daquela carta com o pedido de colaboração, iniciou-se um diálogo epistolar que se estendeu até 17 de janeiro de 1945, cerca de um mês antes da morte de Mário de Andrade. A formalidade do jovem missivista durou poucas cartas e os assuntos abordados foram se ampliando à medida que a conversa se dava. Embora rejeitasse, desde princípios do despontar do movimento modernista, a posição de “papa do modernismo”, a relação de Mário de Andrade com os mais jovens, que o interpelavam com seus textos, desenhos e pedidos de colaboração, era inevitavelmente contaminada pelas expectativas que estes tinham de seu interlocutor privilegiado. Além disso, na escrita epistolar, as personae assumidas pelos correspondentes se deslocam de acordo com o que buscam revelar ou ocultar. Uma carta é um palco e os missivistas são os atores em cena. 

Uma carta é um palco

Na “peça” entre Mário de Andrade e Carlos Lacerda, o jovem estudante não se intimida ou hesita em confrontar o escritor maduro. Por vezes, chega a beirar a insolência, com o estilo implacável que o caracterizou, especialmente, em seus anos de tribuna, seja a da imprensa ou a do parlamento. Entretanto, as conversas iniciais foram de costura de relações, como na carta de 13 de junho de 1933, em que Lacerda acusa o recebimento da resposta de Mário ao inquérito de rumo e aproveita para fazer um convite, por sugestão de Rosário Fusco:  

me disse que o sr. atenderia com prazer a um convite nosso para fazer uma conferência no Rio sobre um tema qualquer, à sua escolha. Digo convite nosso porque não é só meu. Seria de rumo e da SOS (Sociedade de Observações Sociais), associação que funciona aqui dentro, para estudar uma coleção de problemas mal alinhavados pela gente ilustre e cheia de adjetivos difíceis desta nossa terra.

A conferência “Dona ausente: comunicação sobre folclore” foi sugerida por Mário e divulgada com grande entusiasmo pelos estudantes da CEB, conforme carta de Fusco ao escritor paulista em 25 de agosto daquele ano. O tema da “dona ausente” era base de um estudo realizado por Mário sobre a expressão do amor e a ausência da figura da mulher na tradição poética oral luso-brasileira, que ficou inacabado. Assim, em outubro de 1933, o escritor realizou sua primeira parceria com a entidade estudantil carioca e se aproximou de alguns de seus principais integrantes, como Carlos Lacerda.

Não demorou muito para que a intimidade construída pela troca de cartas abrisse espaço para divergências mais afiadas. Embora em cartas, como a do dia 9 de novembro de 1933, Lacerda revelasse não procurar em Mário “guia, campeão, atleta maior”, não deixou de reconhecer, mais à frente, o papel essencial do autor de Pauliceia desvairada. Com o título “Mário de Andrade”, Carlos Lacerda publicou artigo em O Jornal, um dia depois da morte do escritor paulista, reverenciando o amigo como “mestre”, relação que, em vida, sempre rejeitou, principalmente nas primeiras cartas, quando o embate era mais provocativo:

Todos […] receberam dele o calor do estímulo; e da crítica, o infatigável exemplo, a discreta mas profunda influência. Nunca uma grande inteligência fez tão pouco para ser um mestre de gerações. Poucas vezes terá alguém sido tão completamente um mestre. 

Aprendia-se com ele ao mesmo tempo que ele aprendia. E a humildade que muitas vezes marcava a sua atitude em relação às minúcias e particularidades das atitudes e dos fatos que ele julgava não poder acompanhar até as últimas consequências, havia a grandeza suprema de quem sabe manter-se fiel ao único princípio permanente da inteligência, que é o de procurar entender. 

Via de mão dupla

Uma via de mão dupla. Apesar do reconhecimento de Mário de Andrade como intelectual, Carlos Lacerda não se eximia de se posicionar e de exigir, sempre pautado em suas leituras e atuação militante, que o escritor paulista também tomasse o seu lugar no percurso dessa via. Moacir Werneck de Castro, sobre o que ele chama de “exílio” de Mário no Rio de Janeiro, entre 1938 e 1941, observa também essa troca que se dava não apenas com Lacerda, mas com os demais “rapazes da Revista Acadêmica”, como ele próprio, Murilo Miranda e Lúcio do Nascimento Rangel. A Revista Acadêmica, fundada e dirigida por Murilo e secretariada por Lúcio, em 1933, foi também um periódico originado no meio estudantil, na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, mas, diferentemente de rumo, ampliou seu alcance e teve vida mais longa após se desvincular daquela instituição. O time de colaboradores cresceu e o periódico se engajou ainda mais politicamente contra o autoritarismo e em defesa da democracia.

A amizade de Mário com os rapazes da Acadêmica foi fundamental não apenas para sua estadia na então capital federal, em um dos períodos mais difíceis de sua vida, após a demissão do Departamento de Cultura de São Paulo, mas também para sua maturação estética. Não por acaso, um ano após o retorno à sua “Londres das neblinas finas”, revisitou o movimento do qual foi um dos seus principais colaboradores por meio de uma série de quatro artigos em O Estado de S. Paulo

Em 23 de fevereiro de 1942, um dia após o primeiro texto da série, Ana Amélia escreveu carta ao escritor paulista convidando-o para proferir uma conferência pela CEB. O tema era livre. Então, Mário decidiu falar sobre o mesmo assunto da série no jornal paulista, com algumas alterações, deixando o texto ainda mais incisivo e desencantado. A conferência “O movimento modernista”, assim, foi dada no dia 30 de abril de 1942, no Salão de Conferências da Biblioteca do Itamaraty, na então capital federal. A CEB publicou o texto da fala de Mário de Andrade, depois reunido no livro Aspectos da literatura brasileira, publicado pela Americ-Edit em 1943, na coleção Joaquim Nabuco, organizada pelo crítico de literatura Álvaro Lins. 

O intercâmbio intelectual e afetivo entre Mário de Andrade e os estudantes, principalmente os rapazes da Acadêmica e da CEB, exerceu grande influência na trajetória de cada um. No entanto, a correspondência com Carlos Lacerda indica que, daquele grupo, ele possivelmente foi o primeiro a provocar o reexame sincero e doloroso ao autor de Macunaíma, especialmente sobre as tensões entre criação artística e engajamento político, como se pode notar por esta carta escrita por Mário a Lacerda no dia 28 de maio de 1942, mas não enviada para seu destinatário:

Eu tenho errado muito, tenho sido muito ineficaz botando o imediatismo do útil onde ele não era imediato. Mas também no dia em que eu pretendi confessar isso em público no “Testamento” da minha geração, você foi dos que me impediram de publicar minha verdade atual. Depois disso ninguém imagina como eu tenho me debatido, numa ânsia danada de me acertar. E a gente, a vida corre, tem a tendência natural pra esquecer os inícios da vida. Eu me lembro, não sei se você lembra, uma das primeiras cartas minhas, talvez a primeira de já entrados no terreno da camaradagem, carta inesquecível pelo custo que me deu de confessar lealmente a você que eu não poderia corresponder às esperanças e exigências de você, moço de outra idade e ideias e confessava ser um indivíduo que não tinha certeza, que acreditava em Deus, que por mais próximo de você em conclusões simplesmente humanas, estava inexoravelmente separado de você em possíveis conclusões políticas.

Destrinchar e compreender o diálogo estabelecido no conjunto das cartas de Mário de Andrade e Carlos Lacerda (organizadas por mim em edição a sair em breve pela Edusp) são importantes não apenas para nos embrenharmos pelos meandros do pensamento estético e político dos dois correspondentes, e de que modo eles se articulam em suas respectivas confluências e oposições, mas também para que possamos analisar e discutir os principais aspectos do cenário cultural e político brasileiros daquele tempo, bem como suas possíveis ressonâncias e desdobramentos. Os modernismos, naqueles espaços, não eram apenas estudantis, mas, principalmente, estudantes, pois resultavam do estudo, da ação e da solidariedade para o conhecimento e construção de um país diverso e aberto a todas e todos.