por Rachel Valença
Em 2021, cartas são vistas como coisa do passado. Em 1919, porém, eram uma das mais eficientes formas de comunicação. Por isso, justifica-se que, ao falar daquele ano, um samba-enredo utilize a forma epistolar.
O samba-enredo é uma obra de encomenda. Não cabe a seus autores escolher o tema sobre o qual devem criar. Essa escolha é do carnavalesco, que estabelece o enredo da escola e o repassa aos compositores em forma de sinopse. Não é fácil ser original, pois os enredos nem sempre são inspiradores. Portanto, haja criatividade para inovar.
A escola de samba Unidos do Viradouro, campeã em 2020, no último desfile que a pandemia nos permitiu realizar, escolheu para 2022 o enredo “Não há tristeza que possa suportar tanta alegria”, dos carnavalescos Marcus Ferreira e Tarcísio Zanon. Nele se tenta descrever o sentimento dos cariocas em relação à folia de 1919. A razão de ser desse enredo é o paralelismo entre duas datas separadas por mais de um século. Em 1919 o país ainda estava às voltas com o efeito da Gripe Espanhola. Duvidava-se que depois de tanto luto, de tanta dor, ainda houvesse espaço para a alegria e a festa. Consta que surpreendentemente o carnaval de 1919 foi o mais louco e animado do século. Se a doença não acabara com o mundo, cabia celebrar a vida, e o carnaval é sempre uma excelente oportunidade para isso.
É o que acontece no momento com o polêmico carnaval de 2022. Com tantas opiniões divergentes sobre sua realização, traz consigo essa questão: vamos nós, amantes do carnaval, ignorá-lo e continuar em luto e em prudente isolamento? Ou vamos nos lançar à folia com redobrada animação, para compensar as dores e abstinências? É nisso que reside a atualidade do enredo da Unidos do Viradouro para 2022: ele nos convoca à vida.
Como de praxe, inúmeros foram os sambas que participaram da disputa interna da escola para escolha do samba a ser cantado no desfile de 2022. O vencedor, de autoria de Felipe Filósofo, Fábio Borges, Ademir Ribeiro, Devid Gonçalves, Lucas Marques e Porkinho, tem, a par de suas qualidades como composição musical, um dado de originalidade que o torna um marco: é o primeiro samba-enredo com estrutura de carta, com características como vocativo (Amor, escrevi esta carta sincera, e mais adiante, quebrando o mistério, Carnaval, te amo), assinatura (Assinado: um Pierrô Apaixonado) e data (Rio de Janeiro, 5 de março de 1919).
Cartas em forma de samba Noel Rosa já nos deu duas, em 1931 e 1935. Em forma de samba-enredo, para ser cantado em uníssono por componentes e plateia, é a primeira vez que temos. Cabe comemorar, porque é prova de que o gênero se reinventa e se renova. Não admira que essa renovação se dê em direção ao passado: um enredo datado de um século atrás recomenda mesmo algo anacrônico como a carta. Ela funciona como mais um elemento de caracterização da época revisitada. Associada, no entanto, a uma melodia inovadora e pouco convencional, ganha atualidade e ajudará todos nós, pierrôs apaixonados, a vencer os rigores de uma época tão triste.
Não há tristeza que possa suportar tanta alegria
Amor, escrevi esta carta sincera
Virei noites à tua espera
Por te querer quase enlouqueci
Pintei o rosto de saudade e andei por aí
Segui seu olhar, numa luz tão linda
Conduziu meu corpo, ainda
O coração é passageiro do talvez
Alegoria ironizando a lucidez
Senti lirismo, estado de graça
Eu fico assim quando você passa
A Avenida ganha cor, perfuma o desejo
Sozinho te ouço se ao longe te vejo
Te procurei nos compassos e pude
Aos pés da cruz agradecer a saúde
Choram cordas da nostalgia
Pra eternidade um samba nascia
Não perdi a fé, preciso te rever
Fui ao terreiro, clamei: Obaluaê!
Se afastou o mal que nos separou
Já posso sonhar nas bênçãos do tambor
Amanheceu! Num instante já
Os raios de sol foram testemunhar
O desembarque do afeto vindouro
Acordes virão da Viradouro
Tirei a máscara no clima envolvente
Encostei os lábios suavemente
E te beijei na alegria sem fim
Carnaval, te amo, na vida és tudo pra mim
Assinado: um Pierrô Apaixonado
Que além do infinito o amor se renove
Rio de Janeiro, 5 de março de 1919
Ouça aqui “Não há tristeza que possa suportar tanta alegria”, da Unidos da Viradouro: