por Eliana Alves Cruz

Querida Françoise,

Escrevo para você aqui, no século 21, pensando em como tantas distâncias nos separam e admirada como, apesar disto, inúmeras semelhanças nos unem. Sou uma mulher de meia idade, escritora, brasileira como Carolina — a mulher que você tanto admirou e que lhe serviu de inspiração para que relatasse a ela sua realidade em cartas que ela nunca leu.

Não passei nem perto das terríveis condições de vida que tanto você quanto Carolina passaram. Não precisei limpar a casa de ninguém, mas ainda assim me sinto tremendamente próxima a vocês naquilo que está impresso em nós por hereditariedade e destino: nossa negritude e vocação para contar.

É estranho querida, pois você era uma mulher nascida na Martinica, que vivia como imigrante na francesa Marselha. Carolina era uma mineira, que vivia como migrante na brasileira São Paulo, mas eu sou uma carioca, que vivo exatamente no mesmo lugar em que nasci e me sinto tão estrangeira quanto você, tão fora do encaixe quanto Carolina, pois compartilho também dos olhares e do sentimento de hostilidade dos que encaram nossa presença como intrusa. Somos estrangeiras navegando no mar de palavras que buscam deixar impressas nossas pegadas, feitas das pegadas de muitas outras pessoas que por este planeta passaram.

Eu li o seu Cartas a uma negra entendendo e sentindo cada linha. Entendendo sua ansiedade em não deixar que o tempo apagasse suas impressões acerca de uma sociedade ávida em nos inviabilizar, como aquela patroa que não lhe perguntou o nome. Você teria gostado de ler Lélia Gonzalez, que dizia que pessoas negras precisam ter nome e sobrenome.

             Capa do livro Cartas a uma negra (2021)

Você, Françoise, está muito perto de mim quando escreve compulsivamente e testa sua escrita com a família e com quem se dispõe a ler estas coisas de negros, como dizia o seu marido, Franz Ega, um homem negro também lutando para sobreviver naquele momento histórico. Ele afirmava que ninguém se importa com tais experiências, mas estamos aqui: eu, você e Carolina. Vocês duas imensas aos meus olhos que não conseguem acostumar-se com a visão de tanta desigualdade neste mundo.

Seu marido, querida, também banhado pelo machismo que não dá crédito ao que mulheres produzem, sobretudo mulheres negras, dizia que você folheava o dicionário com muita frequência e que romancistas não necessitam de dicionário. Veja só… Carolina usava palavras lindas porque um dicionário foi sua primeira leitura. Contrariando a crueldade das afirmações de Franz, suas palavras não são mamoeiros machos ou flores ao vento. Elas deram frutos porque são sementes polinizadas por nós, aquelas que compartilham, como falei acima, hereditariedade e sina.

Assim como você, Françoise, também consigo imaginar Carolina escrevendo à luz de vela e, com o mesmo incentivo, me debruço em uma nova página e a encho de realidade. No meu caso, ainda que ficcionalizada.

Discordo muito de você quando fala não digo que meus rabiscos sejam uma obra-prima. Primeiro que não são rabiscos e segundo que sim, são magistrais! Como também é magnífica a obra de Carolina. Sabe por que, senhora Ega? Porque descrevem o real com extremada poesia e extrair poesia de dentro da pobreza, da sobrecarga de tarefas, da humilhação, da menos valia, da doença, do cansaço físico, moral e espiritual não é para aquelas que são fortes, mas para as verdadeiras artistas.

Vieram lágrimas aos meus olhos quando falou das violências sofridas pelos filhos na escola, onde eram xingados e chamados por apelidos pejorativos por serem estrangeiros negros. Esta foi mais uma passagem que me confirmou a não passagem do tempo e a não evolução da humanidade, pois, como lhe contei, não sou imigrante, mas sou negra e meus filhos também e eles, aqui na longínqua terceira década do maior país da América do Sul, passaram em suas escolas pelas mesmas coisas que os seus. Desta forma, me uno a você no desejo de acrescentar frases à litania dos santos: Dos campos da morte, livrai-nos, Senhor. Do racismo, de onde quer que venha, livrai-nos, Senhor.

E por falar em filhos, enxerguei em seu relato a preocupação constante com o bem-estar de suas crianças, a preocupação com os sapatos furados… Carolina também queria dar sapatos novos para sua filha Vera Eunice em seu aniversário. Eu, felizmente, posso dar os sapatos que meus filhos precisam e desejam, posso trocá-los quando furam. Nisto demos um passo adiante, Françoise, mas acredita que a preocupação de que em qualquer momento, por qualquer capricho do destino ou destes governos que nos desprezam eu não possa suprir minha família ainda me atemoriza fortemente? Este sentimento de pavor pela precariedade tem uma raiz fortíssima nos sofrimentos vividos por você, por Carolina e pelas minhas avós, bisavós, tetravós…

Querida, fico feliz que o livro “Cartas a uma negra” tenha sido impresso em 1978, ainda que depois de sua partida precoce em 1976, na mesma idade com a qual me encontro agora. Carolina se foi logo em seguida, em 1977. Neste mundo, envelhecer também é um privilégio. As coisas para nós acontecem assim, um tanto tardias. Veja o que Carolina teve que suar para ser reconhecida como se deve e a quantidade de anos em que caiu no esquecimento.

Por último, conto que há uma coisa que acho belíssima em você, senhora Françoise Ega: o sentido de coletividade. Entendo demais quando você fala que …para o bem das minhas irmãs que chegam em barcos lotados para viver na França. Não aportei na França chegada em nenhum barco lotado, mas considero-me também sua irmã. E sua resiliência em aguentar firme os desaforos, os desmandos e o desprezo concentrando-se em escrever para nos legar obra tão linda, me fez um bem enorme. Assim como sua inspiração — Carolina Maria de Jesus — me renova cada vez que revisito suas páginas. Por causa de mulheres como vocês, que também são as minhas mais velhas, sigo aqui e me imponho a tarefa de contar… para o bem das minhas irmãs.

Espero conseguir o propósito de envelhecer bem, escrevendo coisas belas ainda que para falar de realidades por vezes doloridas e um dia, bem velhinha, partir feliz para encontrar você e Carolina na terra dos ancestrais. Um beijo fraterno e um abraço muito apertado da sua profunda admiradora,

Eliana Alves Cruz

Escritora