Na manhã de uma sexta-feira em dezembro, tivemos a oportunidade de conversar com a professora Hebe Mattos. Com pensamentos densos sobre a trajetória de André Rebouças, Hebe apresenta Cartas da África, lançada pela editora Chão. Em grande parte organizada pelo próprio engenheiro, a edição lançada reúne a correspondência completa entre 1891 e 1893, na qual se pode notar sua “aguda clareza político-racial”. Pelo livro, podemos conhecer as trocas intelectuais e a rede internacional construída por Rebouças, assim como fica evidente a importância do trabalho de pesquisa contínuo sobre o Brasil nos dias de hoje.

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1. Enquanto professora e pesquisadora, como foi seu encontro com os diários e as cartas do André Rebouças?

Entrei em contato com os diários e as cartas de André Rebouças inicialmente pela leitura da seleta desses documentos publicada por Ignácio e Ana Flora Veríssimo, em 1938. Utilizei o volume na minha tese de titular, defendida na UFF em 2004, Marcas da Escravidão: biografia, racialização e memória do cativeiro na história do Brasil

À época, as poucas cartas da África publicadas naquela coletânea me impressionaram e estiveram no centro da análise. Consegui fotografar o conjunto completo das cartas escritas no continente africano, na Fundação Joaquim Nabuco, em algum momento entre 2005 e 2007. 

2. André Rebouças ficou bastante conhecido como pessoa pública, engenheiro. Mas quem é o André remetente?

Sou suspeita para falar, porque considero o André remetente um personagem absolutamente fascinante. Se, por toda a vida, ele se contou em um diário, na primeira pessoa, no exílio, ele resolveu se contar em diálogo, o que é muito interessante. 

Entre os correspondentes, sua amizade e intimidade com Alfredo Taunay, ex-senador do império, monarquista, historiador e seu colega na sociedade brasileira de imigração, emociona. Vai da troca intelectual ao suporte afetivo. O apreço e a troca intelectual com Joaquim Nabuco, liberal abolicionista como ele, e com o jornalista, abolicionista e republicano, José Carlos Rodrigues, por muitos anos radicado nos Estados Unidos, também são centrais para o perfil intelectual que constrói para si nas cartas transcritas. 

André é aquele tipo de pessoa que não se exprimia sem fazer referência às suas ideias e convicções. Sua correspondência financeira com o Bank of London impressiona por desvendar trâmites financeiros globais em um mundo que se comunicava por navios a vapor e estradas de ferro. Seus muitos amigos em Lisboa e Londres dão a medida do seu cosmopolitismo e da extensão de suas redes empresariais.  A correspondência com familiares e colegas da Escola Politécnica nos fazem vislumbrar as burocracias brasileiras que continuava a movimentar. 

3. O que significou essa ida dele à África?

A viagem à África, para ele, era uma missão científica e humanitária, em que pretendia escrever um livro sobre o continente, planejado ainda quando estava na Europa. Desse livro, que ele declarou concluído em uma carta da cidade do Cabo, na África do Sul, encontrei alguns fragmentos na casa de sua sobrinha neta, Ana Maria Rebouças, que estão comentados no posfácio do volume.

4. Ainda no Brasil, Rebouças fazia anotações em um diário, depois passou a copiar as cartas que enviava. Essa mudança de suporte indica alguma outra mudança?

Creio que sim. Até o exílio, André manteve o diário. Funcionava como uma espécie de agenda de suas atividades. Um registro para o futuro em busca de reconhecimento, eu diria. No exílio, decidiu se contar em cartas. Isso trouxe mais informações sobre seus estados de ânimo e sobre seus afetos. E sobre suas ideias. Sobressaem nas cartas, suas trocas intelectuais. 

Depois da viagem à África, estabelecido em Funchal, ele releu todo o diário. Fez anotações em cada caderno, preocupando-se em destacar, sobretudo, suas iniciativas abolicionistas desde o fim da guerra do Paraguai. Ele tinha plena consciência que estava construindo ali sua memória para a posteridade. 

5. Pode comentar um pouco sobre a prática de escrita do André Rebouças?

André manteve por toda a vida adulta a prática de registrar em um diário os principais acontecimentos e as atividades de cada dia. A maior parte do diário, mais de 20 grossos cadernos, escritos entre 1863 e 1891, está depositada na Fundação Joaquim Nabuco, assim como os cadernos de Registro de Correspondência em que passou a copiar as cartas que escrevia no exílio.  

Algumas cartas começam em uma página do caderno e continuam muitas depois ou até mesmo em outro volume – isto é, as cartas transcritas não foram copiadas nos cadernos necessariamente em ordem cronológica. Todas trazem, porém, a data da escritura na margem esquerda e o próprio André, em algum momento posterior, provavelmente em Funchal,  na Ilha da Madeira, identificou cada correspondente com um lápis azul no topo da página da carta transcrita. Algumas informações extras sobre eles, como o endereço ou a profissão, aparecem por vezes na margem direita das páginas dos cadernos. Com o mesmo lápis azul, André informou a um futuro leitor dos cadernos, quando necessário, como juntar as pontas das sequências que não se faziam evidentes.

Entre final de outubro de 1891 e julho de 1893, período em que eu tinha as cartas fotografadas, André planejou e empreendeu uma surpreendente viagem de circum-navegação do continente africano. Por cerca de 15 anos, essas imagens foram minhas companhias. Eu as li e reli. Muitas das novas questões de pesquisa que hoje me movem surgiram do meu diálogo com esses registros. 

6. O livro Cartas da África: Registro de correspondência, 1891-1893 dá pistas da vida de Rebouças em alguns países. Nesse momento, qual Brasil Rebouças deixa, qual África ele encontra?

A melhor maneira de responder esta questão é sugerindo a leitura do livro. As cartas quando colocadas em ordem cronológica produzem uma experiência literária interessantíssima. Os correspondentes vão se delineando como personagens que costuram um enredo sobre os acontecimentos do Brasil que então ele deixou e da África sob a violência da colonização europeia que, para além de seus sonhos e idílios, ele realmente encontrou. No posfácio Ulisses Africano: modernidade e dupla consciência no Atlântico Sul procuro fazer uma análise desses contextos.

O volume começa ainda em Cannes, na França, quando após a morte do imperador ele passa a planejar sua viagem ao continente africano. Ele deixara o Brasil convencido de que a queda da monarquia e a instauração da República tinham sido fruto de um golpe militar ancorado nos antigos interesses escravocratas contrariados com a abolição da escravidão sem indenização aos “proprietários” e que a África se apresentava como continente do futuro

Mesmo depois da promulgação de uma nova constituição, em 1891, continuou a afirmar que “o militarismo, o jesuitismo e o fazendeirismo” mantinham-se como os principais males do país, cujos acontecimentos acompanhava atentamente. Considerava a imigração subvencionada para a grande lavoura paulista um sucedâneo do tráfico de escravizados. 

Em África, sua ideia inicial era fazer a circum-navegação do continente para se estabelecer como engenheiro em Angola, atuando na construção de estradas de ferro e na introdução da lavoura do café, com base na pequena propriedade. A crise anglo-lusa o deteria em Moçambique (Lourenço Marques) e na África do Sul, onde ficou pouco mais de um ano entre Barberton, no Transvaal, e Capetown. 

Seus planos de atuar para a civilização do continente o colocam como um dos precursores oitocentistas do pensamento pan-africanista. Seu olhar sobre a ação colonial europeia efetivamente em curso o tornaria um ácido crítico da violência neocolonial no continente.

7. E como surgiu a ideia da publicação?

Aquela edição de 1938 é muito seletiva, especialmente em relação aos registros de correspondências, mas também em relação ao texto dos diários. E praticamente não incorpora o período da campanha abolicionista, cujos volumes foram doados pelo próprio André ao IHGB. É isso que me animou para organizar uma coleção com as cartas do exílio e os diários do período abolicionista de André Rebouças, com apoio da editora CHÃO.

Nos cadernos de número IV e V, por exemplo, André copiou à mão cerca de 150 cartas que teriam sido enviadas a 25 correspondentes. Nessas missivas, ele deixou registrada uma aguda consciência racial. Escrevi alguns textos sobre elas, mas achei que apenas uma edição completa do conjunto faria justiça a seu conteúdo e qualidade literária

Quando comecei a trabalhar em uma biografia de André Rebouças, ele havia deixado um verdadeiro monumento de si mesmo arquivado na forma de diários ou de cartas registradas.

8. Como foi o processo de edição das cartas? Teve alguma que tenha particularmente comovido e/ou marcado a professora?

Na primeira leitura, a chave que me capturou para a riqueza das cartas africanas foi a consciência racial do personagem, para mim, então, muito surpreendente. Vê-lo declarar-se africano em uma carta para o imperador me fez desejar ler todas as missivas registradas durante a viagem ao continente. Justificando sua decisão de viagem ao amigo José Américo dos Santos, escreveu, ainda antes de embarcar no Paquete Malange com destino à Lourenço Marques, em Moçambique:

Compreende, meu Santinhos, que estou cansadíssimo do mundo, da vida, e, sobretudo, da tal civilização. Espero que Deus conceda-me o Fim na África e que possa ali alcançar o repouso eterno.

Em África, leitor e amante da Odisseia, de Homero, ele expressou sua identidade partida na metáfora Ulisses/Eumeu. Associando-se a Ulisses, o herói grego da Odisseia, buscou afirmar seu universalismo a partir da opção pela viagem como forma de estar no mundo. A aproximação com Eumeu, o fiel escravo do rei de Ítaca, evocava as desventuras dos últimos libertos  brasileiros, bem como sua própria condição racial e sua fidelidade à família imperial. Segundo ele, em carta a José Carlos Rodrugues,  “a Odisseia do Negro André soma todos os trabalhos de Ulisses e todas as dores do escravo Eumeu”.

Na África, ela acompanhou o avanço da guerra civil no Brasil e do arbítrio militarista.  André horroriza-se também com a prevalência dos interesses dos cafeicultores paulistas, que definia como latifundiários e sempre escravocratas. Por todo o exílio, ele é um poço de ressentimento. Acompanhar as intrigas políticas e o amplo círculo de nomes que ele cita com conhecimento pessoal foi o maior desafio do trabalho de edição. 

A originalidade ao mesmo tempo datada e atual de seu olhar sobre o Brasil é absolutamente impressionante. Sua desilusão com as perspectivas de democratização do Brasil e de incorporação da África à modernidade são absolutamente avassaladoras na experiência que ele procura nos legar. 

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