I. O frágil
Comecemos por uma pequena digressão. Josefina Ludmer, no ensaio Las tretas del débil (algo como As artimanhas do frágil), faz algumas considerações sobre o que se convencionou chamar de literatura feminina/de mulheres a partir da análise de um texto de Sor Juana Inés de la Cruz, a escritora e freira mexicana (na verdade novo-hispana) que viveu e escreveu na segunda metade do século XVII (nasceu em 1648 ou 1651, não se tem certeza, e morreu em 1695). Em 1690, por encomenda de um homem da igreja, Sor Juana redigiu o que conhecemos hoje por Carta Atenagórica, que, como ela explica no texto, foi pensado como uma correspondência privada, já que à época mulheres não podiam se posicionar publicamente sobre teologia. Acontece que esse religioso publica a Carta, acompanhada de um prólogo assinado por pseudônimo feminino (Sor Filotea de la Cruz), no qual elogia e recrimina a argumentação de Sor Juana. Alguns comentadores consideram essa publicação um ato de traição de parte do religioso; outros, um arranjo que dá mostras da perspicácia de Sor Juana, que aproveitou essa brecha para demonstrar sua erudição e capacidade argumentativa (uma artimanha do frágil, nos termos de Ludmer).
Na Carta, Sor Juana critica o Sermão do Mandato (de 1650, ou seja, de quando Sor Juana estava nascendo), do célebre padre Antônio Vieira (Lisboa, 1608 – Salvador, 1697), rebatendo seus argumentos um a um. Nesse sermão, Vieira discorda de três santos (Santo Agostinho, São Tomás e São João Crisóstomo), numa mostra da autonomia que tinha para ler as escrituras e interpretá-las a seu favor, colocando a oratória antes da literalidade. A Sor Juana estava negada inclusive a literalidade, o que faz da Carta Atenagórica um documento de sua insubmissão. Insubmissão conservadora, já que defende os três santos da liberdade oratória de Vieira, mas, ainda assim, insubmissão registrada em texto de grande valor retórico e estético.
A Carta tem grande repercussão e, como se pode imaginar, rende problemas a essa mulher que ousou debater com homens. Em 1691, Sor Juana escreve uma resposta a Sor Filotea, que se converte em um de seus textos mais importantes porque narra sua biografia. A resposta deve ter circulado em Nova Hispana, mas só é publicada em livro postumamente, em 1700. É essa resposta a Sor Filotea que Josefina Ludmer analisa no ensaio citado e afirma: “Por meio da carta e da autobiografia, Juana erige uma polêmica erudita. Agora se entende por que esses gêneros menores (cartas, autobiografias, diários), escritos limítrofes entre o literário e o não literário, chamados também de gêneros da realidade, são um campo preferido pela literatura feminina”.
Ludmer afirma ainda que, uma vez vedados às mulheres os gêneros em que tradicionalmente se discute política, ciência, filosofia, resta a elas debater esses temas no âmbito pessoal, privado e cotidiano. Mas aí está a artimanha do frágil: ao infiltrar nos gêneros menores o debate público, eles deixam de ser menores. Sor Juana é um exemplo dessa artimanha. Ela só estava autorizada a escrever uma carta privada encomendada por um homem da igreja e escreve a Carta Atenagórica, um texto que duela com o sermão de Vieira.
Mais de duzentos anos depois, e obviamente sem as mesmas limitações de Sor Juana, Victoria Ocampo (Buenos Aires, 1890 – 1979) vai mostrar perspicácia no uso dos gêneros tidos como menores. Autobiografia, Testimonios, notas de rodapé, todo texto é lugar para o debate de ideias. Suas cartas e relatos de viagem seguem a mesma linha.
II. Ocampo e Woolf
Entre 1934 e 1940 Victoria se correspondeu com Virginia Woolf, a essa altura uma escritora já consagrada. Victoria tinha publicado alguns ensaios e fundado a revista e editora Sur, ou seja, começava sua atividade de mulher pública. Na correspondência elas negociam a publicação dos livros de Woolf em Sur, o que de fato se concretiza: Un cuarto propio em 1936, tradução de Jorge Luis Borges; Orlando em 1937, também traduzido por Borges; Al faro em 1938, tradução de Antonio Marichalar; e Tres guineas em 1941, tradução de Román J. Jiménez.

As cartas poderiam ser meras tratativas de negócios, o que já seria bastante coisa: estamos falando das primeiras traduções dos livros de Woolf para o espanhol. Mas não, elas aproveitam as cartas para discutir escrita e literatura. Felizmente, agora podemos ler essa correspondência em português: a editora carioca Bazar do Tempo publicou em 2024 o belo volume Victoria Ocampo e Virginia Woolf: Correspondência, baseado na edição argentina organizada por Manuela Barral, tradução de Emanuela Siqueira, Nylcéa Pedra e Rosalia Pirolli.
Em carta de 11 de dezembro de 1934, Victoria escreve:
Se tem alguém no mundo que pode me dar coragem e esperança, é você. Pelo simples fato de ser quem você é e de pensar como você pensa. Eu seria ingrata se dissesse que nunca fui encorajada etc. Tenho amigos (homens) que acham que sou talentosa a ponto de ser genial, dizem e escrevem isso. Mas essas declarações, lá no fundo, sempre me deixaram fria e incrédula. Elas são impuras. Você entende o que quero dizer… Os homens julgam uma mulher sempre (ou quase sempre) conforme eles mesmos, conforme as reações que eles têm no contato com ela (espiritual… até). Sobretudo se ela não for disforme ou não tiver um rosto desagradável. É inevitável para eles, em especial se forem latinos. Eles não podem portanto servir como referência, honestamente.
Em 22 de dezembro de 1934, Virginia responde:
Fico muito contente por você escrever crítica em vez de ficção. E tenho certeza de que é uma boa crítica – precisa e afiada tal como uma faca, não como um forcado de uma máquina velha e enferrujada. […] Espero que você siga com Dante, depois com Victoria Ocampo. Foram pouquíssimas as mulheres que escreveram autobiografias honestas. […] Espero que você escreva um livro inteiro de textos críticos e me envie. Se você tiver tempo, uma carta de vez em quando.
A generosidade da inglesa consagrada com a argentina insegura, o incentivo para fazer o que não se espera dela (escrever crítica) e para se apropriar do gênero autobiografia. Artimanhas do frágil…
III. Personalidade que revida
Em contraponto ao estímulo que recebeu de Woolf, vale referir o que Paul Groussac disse a Victoria Ocampo quando ela lhe mostrou seu ensaio sobre Dante. O episódio ilustra bem a hostilidade do mundo letrado à presença feminina. Groussac, francês radicado na Argentina desde os anos 1860, foi diretor da Biblioteca Nacional de 1885 a 1929, ano de sua morte. É um daqueles europeus aclimatados, como ironizou Ricardo Piglia, em Respiração artificial: intelectuais que em seus países de origem eram peças secundárias e que uma vez instalados na Argentina viram “árbitros da vida cultural”. Victoria estava escrevendo De Francesca a Beatrice – o ensaio que publicaria em 1924 e cuja segunda edição sairia na Revista de Occidente, de Ortega y Gasset, em 1928 – e resolve submeter o texto à avaliação do ilustre diretor. Ele diz que muito já se escreveu sobre a Divina comédia e que, se ela não tivesse um enfoque original ou dado inédito, era melhor deixar o texto em paz. Também a acusou de pédantesque e aconselhou que escrevesse sobre um tema mais ao seu alcance, mais pessoal.
Victoria narra o episódio em Mujeres en la Academia, seu discurso de posse na Academia Argentina de Letras, de 1977 (Victoria foi a primeira mulher a integrar a Academia), incorporado ao décimo tomo de Testimonios. É uma mulher de 87 anos rememorando algo que viveu aos 30, quando não se sentia segura para contra-argumentar, em especial diante de tamanha autoridade. Mas nesse texto de 1977 ela está plenamente segura e, melhor ainda, debochada: “naquele momento não tive presente sua [de Groussac] ácida crítica ao ‘Sarmiento’ de Rodin que, guardada a distância, teria me reconfortado. Eu era uma inexperiente principiante e não tinha direito a replicar como fez o escultor francês: ‘Eu o vejo assim’”. Ocampo se refere ao grupo de intelectuais, Groussac incluído, que contratou Rodin para esculpir um busto de Sarmiento e depois não gostou do resultado, um episódio que ficou famoso por ilustrar o descompasso entre o gosto estético no centro e na periferia. Ao recorrer a esse caso, Victoria está aliando-se a Rodin contra a caipirice local, também incapaz de compreender sua leitura de Dante.
Mas Victoria levou tempo para construir essa personalidade que revida, ironiza e se impõe, teve que engolir muito sapo nos círculos familiar, profissional e afetivo. Passou a vida sendo a primeira e única mulher em ambientes agressivamente masculinos. Não deve ter sido fácil. Por outro lado, o privilégio de classe dificulta a adesão completa à sua figura, o feminismo de Victoria sempre estará atravessado por seu lugar social. Nesse ponto, concordo com Beatriz Sarlo: “a abundância material e os tiques de esnobismo não devem ocultar os esforços da ruptura”. E Victoria Ocampo rompeu com o esperado das filhas e esposas de sua classe e, como mulher pública, usou suas vantagens para abrir caminho a outras mulheres que também não se resignavam à vida doméstica.
Victoria registrou na Autobiografía seus atritos com a família, as imposições e limitações de comportamento, de leituras, de convivência. Registrou também o fracasso de seu casamento, ocorrido em novembro de 1912, do qual pulou fora poucos meses depois:
A atmosfera estava tensa em Roma, quatro meses depois do meu casamento, sem que eu tivesse culpa e talvez nem M [Monaco, apelido de Luis Bernardo de Estrada]. Ele continuava sendo o que tinha sido: bom-moço (detestei essa beleza quando aprendi a decifrá-la), inteligente (se comparado aos homens que eu frequentava), mas com uma inteligência desconectada da sensibilidade. Suscetível, tirânico e frágil, convencional, devorado pelo amor-próprio, católico e anticristão, exigente e mesquinho, me tratava como um país conquistado e desconfiava de mim o tempo todo. […] Alguns meses de casamento e o andaime construído pela minha imaginação e necessidade de me apaixonar estava derrubado. Descristalizava com velocidade porque M. não me retinha nem pelo coração, nem pela inteligência, nem pelos sentidos. Era um objeto criado por mim que se desfazia entre as mãos. Se tivesse tido liberdade para conhecê-lo melhor antes de casar, nunca teria casado.
Victoria escreve isso em 1952, aos 62 anos de idade – quer dizer, 40 anos depois do casamento. É a mulher madura, segura de si, que chega a essa conclusão que não é individual, marca muitas mulheres de sua classe e geração. Victoria rompe com o marido ainda na lua de mel e vive um casamento de fachada até o divórcio, assinado em 1922. Uma transgressão para a época, agravada pela relação clandestina pero no mucho que manteve com Julián Martínez, primo de seu marido. A vida sexual de Victoria, seus relacionamentos com Keyserling, Drieu La Rochelle, Roger Caillois, renderá muito comentário misógino que ela combaterá com altivez. O caso de Keyserling é muito mais sério. Como bem avaliou a pesquisadora Irene Chikiar Bauer, Keyserling teve atitudes que hoje não duvidaríamos em qualificar como assédio e que nos anos 1930 foram tidas como naturais.
Para além de se permitir viver sua sexualidade, Victoria Ocampo capitaneou ações feministas como mulher pública. Segundo María Celia Vázquez:
Em primeiro lugar, concreta e efetivamente, Victoria inclui em sua trajetória o que hoje chamaríamos militância feminista. Ao longo de sua vida foi companheira de rota de diversas agrupações feministas argentinas, além de ter difundido a obra e promovido a leitura de escritoras feministas como Virginia Woolf, Simone de Beauvoir e Susan Sontag. O feminismo de Ocampo inclui as ações feministas e a prédica feminista especialmente associadas à defesa da emancipação das mulheres através da educação. No âmbito do ativismo, suas intervenções remontam aos anos 30, quando defende os direitos cívicos para as mulheres; pontualmente me refiro à sua participação na campanha contra a revogação da lei promulgada em 1926, que outorgava os mesmos direitos civis a homens e mulheres maiores de idade. Em 1936, sob a presidência de Justo, se tentou aprovar uma nova versão do Código Civil. Entre as modificações estava a revogação dessa lei. Diante dessa ameaça, Victoria se soma como companheira de rota da União Argentina de Mulheres. Participa de manifestações de rua e escreve alguns folhetos doutrinários sobre os direitos e as responsabilidades das mulheres.

IV. Perguntar às mulheres
Seja nessa atuação política mais evidente, seja em sua vida privada ou em seu protagonismo à frente da revista e editora Sur, Victoria toma partido no debate feminista de sua época. Agora voltemos ao uso arrojado dos gêneros, dessa vez um relato de viagem. E não é qualquer viagem: Victoria Ocampo foi a única mulher convidada a assistir aos julgamentos de Nuremberg.
A convite do British Council, em 1946 Ocampo assiste a dois dias do julgamento que condenou nazistas do calibre de Göring, Hess, Ribbentrop e Keitel. Escreve suas Impresiones de Nuremberg, crônica que incluiria na quarta série de Testimonios, de 1950. Depois de narrar a viagem em um avião pra lá de instável, a cidade em ruínas, o espetáculo visual e os personagens do drama, totalmente consciente da responsabilidade histórica de seu relato, ela pondera:
O complô hitlerista foi um assunto de homens. Não há mulheres entre os acusados. Por acaso é a razão para que não estejam entre os juízes? Não seria justamente uma razão para que estivessem? Se os resultados do processo de Nuremberg vão pesar sobre o destino da Europa, não é equitativo que as mulheres possam dizer uma palavra sobre eles? Foram poupadas da guerra? Se mostraram companheiras indignas no momento do perigo? Seriam indignas no momento de tomar decisões que pesarão no futuro do mundo? Até agora o fracasso dos homens em matéria de repressão e prevenção dos crimes de guerra, e da guerra – que é sempre crime –, sinceramente, foi estrepitoso. Perguntar às mulheres qual sua opinião sobre essas questões, permitir que intervenham nelas, não comporta nenhum perigo e pode oferecer vantagens insuspeitas.
Novamente a Victoria feminista usando um gênero menor para tratar de assuntos maiores. E o uso arrojado, irreverente dos gêneros localiza Victoria na tradição argentina. Victoria faz uso de uma primeira pessoa que se manifesta em Autobiografias, Testimonios, ensaios pessoais, cartas, relatos de viagem e também em notas de tradução – ela não separa seu exercício como tradutora de sua obra autoral. A presença de uma voz autoral beirando o confessional em gêneros nos quais não é esperada força os limites desses gêneros e, em alguns casos, põe em dúvida certos consensos sobre sua estabilidade. Muito já se escreveu sobre a relação irreverente que os escritores argentinos têm com os gêneros: o ensaio-romance de Sarmiento, o anti-romance de Macedonio Fernández, os contos-ensaio de Borges, as miscelâneas de Cortázar, os romances-ensaio de Piglia. Victoria também participa dessa tradição, revolvendo a literatura argentina com as artimanhas do frágil.