São Paulo, 10 de dezembro de 1972
Prezado Decio,
Domingo à tarde. Reli, comovidamente, durante duas horas, todas as suas críticas, em Teatro em progresso, às peças de Guarnieri. E ficou forte a necessidade de lhe escrever: para dizer o quanto essas horas foram importantes, o quanto me devolveram um “tom”, uma convivência, um diálogo há muito perdidos. Também no plano pessoal: me devolveram tanta coisa tão fundamental em nossas vidas: Black-tie,[1] lido pela primeira vez (nem se sonhava em ver a peça encenada) por um namorado à sua namorada – ele com 21 anos, ela com 19 – num fim de madrugada. A moça se emocionou, disse que não seria justo que a peça não fosse encenada por muita gente mais; um ano depois, a estreia – ambos já noivos, o casamento logo depois (com os direitos autorais do rompimento de Tião e Maria: um pouco irônico). Depois Gimba:[2] suas observações, mais do que justas, no momento nos pareceram realmente uma “esfriada” em nosso entusiasmo, mas um pouco de reflexão e de tempo as provaram exatas. A viagem para a Europa: foi lá que nosso filho Flávio, afilhado do Rangel, nasceu. Você diz, ao final da crítica ao Gimba, que o resto da história de Guarnieri seria contado por ele mesmo, a seu tempo: “só sabemos que será também uma história de escolhas e decisões morais – como a do jovem protagonista de Eles não usam black-tie. E quem viveu viu: veio A semente – que não deixava dúvidas quanto à escolha moral do autor. Um homem que, diante da “terrível tentação da felicidade” de que você fala, soube não se deixar levar – nunca – preferindo sempre o caminho menos concessivo, mais árduo – o mais coerente.
Decio, não estranhe essa pequena incursão por um passado – o nosso – que me é tão caro, e tão próximo: como muitos de nós, eu tenho uma imensa saudade das estreias, da ansiedade com que se passava a noite em claro para esperar as críticas do Estadão, para saber se uma peça ia “pegar” ou não, dos nossos sonhos (quase uma certeza) de que o teatro que se fazia modificaria um mundo que não achávamos justo.
Isso tudo foi nossa vida – minha, do Guarnieri, de tantos amigos – durante quase dez anos. Nem sei mais por onde anda a maior parte de nós: razões mais ou menos óbvias nos transportaram para lugares mais ou menos confortáveis. Eu, por mim, continuo – com coerência, espero – minha vida de tradutora e jornalista, com menos brilho e mais consciência do que antes. Guarnieri, com Castro Alves,[3] reviveu muitos dos nossos anos dourados: isso não terá escapado a você, Sábato,[4] e alguns outros amigos.
Sou grata a você, por essas horas de hoje, e pela sua lealdade sempre.
Não quero que o ano termine sem que eu lhe diga isso.
Me perdoe esta carta escrita a máquina (por deformação profissional) e receba o abraço amigo da
Cecília Thompson
Arquivo Decio de Almeida Prado/ Acervo IMS.
[1] N.S.: A peça Eles não usam black-tie foi escrita em 1958 por Gianfrancesco Guarnieri para o Teatro de Arena.
[2] N.S.: Gimba é peça de Gianfrancesco Guarnieri e estreou em 1959 sob a direção de Flávio Rangel.
[3] N.S.: Em 1971, ano do centenário da morte de Castro Alves, Gianfrancesco Guarnieri homenageou o grande poeta do final do Romantismo brasileiro com a peça Castro Alves pede passagem, encenada no Teatro Galpão, em São Paulo.
[4] N.S.: Sábato Magaldi (1927-) é crítico teatral, jornalista e professor.