Detalhes da Carta

A atuação de Decio de Almeida Prado na coluna de crítica teatral em O Estado de S. Paulo mudou a feição do gênero, mostrou-se fundamental para a formação de um novo tipo de público, além de ter sido respeitada por toda uma geração de profissionais no país, entre os quais o ator Gianfrancesco Guarnieri e Cecília Thompson, jornalista e atriz com quem foi casado. Decio reuniu alguns de seus textos em Teatro em progresso, cujas críticas às peças de Guarnieri motivaram esta carta de Cecília em retrospectiva de um período importante para o teatro brasileiro.

São Paulo, 10 de dezembro de 1972

Prezado Decio,

Domingo à tarde. Reli, comovidamente, durante duas horas, todas as suas críticas, em Teatro em progresso, às peças de Guarnieri. E ficou forte a necessidade de lhe escrever: para dizer o quanto essas horas foram importantes, o quanto me devolveram um “tom”, uma convivência, um diálogo há muito perdidos. Também no plano pessoal: me devolveram tanta coisa tão fundamental em nossas vidas: Black-tie,[1] lido pela primeira vez (nem se sonhava em ver a peça encenada) por um namorado à sua namorada – ele com 21 anos, ela com 19 – num fim de madrugada. A moça se emocionou, disse que não seria justo que a peça não fosse encenada por muita gente mais; um ano depois, a estreia – ambos já noivos, o casamento logo depois (com os direitos autorais do rompimento de Tião e Maria: um pouco irônico). Depois Gimba:[2] suas observações, mais do que justas, no momento nos pareceram realmente uma “esfriada” em nosso entusiasmo, mas um pouco de reflexão e de tempo as provaram exatas. A viagem para a Europa: foi lá que nosso filho Flávio, afilhado do Rangel, nasceu. Você diz, ao final da crítica ao Gimba, que o resto da história de Guarnieri seria contado por ele mesmo, a seu tempo: “só sabemos que será também uma história de escolhas e decisões morais – como a do jovem protagonista de Eles não usam black-tie. E quem viveu viu: veio A semente – que não deixava dúvidas quanto à escolha moral do autor. Um homem que, diante da “terrível tentação da felicidade” de que você fala, soube não se deixar levar – nunca – preferindo sempre o caminho menos concessivo, mais árduo – o mais coerente.

Decio, não estranhe essa pequena incursão por um passado – o nosso – que me é tão caro, e tão próximo: como muitos de nós, eu tenho uma imensa saudade das estreias, da ansiedade com que se passava a noite em claro para esperar as críticas do Estadão, para saber se uma peça ia “pegar” ou não, dos nossos sonhos (quase uma certeza) de que o teatro que se fazia modificaria um mundo que não achávamos justo.

Isso tudo foi nossa vida – minha, do Guarnieri, de tantos amigos – durante quase dez anos. Nem sei mais por onde anda a maior parte de nós: razões mais ou menos óbvias nos transportaram para lugares mais ou menos confortáveis. Eu, por mim, continuo – com coerência, espero – minha vida de tradutora e jornalista, com menos brilho e mais consciência do que antes. Guarnieri, com Castro Alves,[3] reviveu muitos dos nossos anos dourados: isso não terá escapado a você, Sábato,[4] e alguns outros amigos.

Sou grata a você, por essas horas de hoje, e pela sua lealdade sempre.

Não quero que o ano termine sem que eu lhe diga isso.

Me perdoe esta carta escrita a máquina (por deformação profissional) e receba o abraço amigo da

Cecília Thompson

Arquivo Decio de Almeida Prado/ Acervo IMS.

[1] N.S.: A peça Eles não usam black-tie foi escrita em 1958 por Gianfrancesco Guarnieri para o Teatro de Arena.
[2] N.S.: Gimba é peça de Gianfrancesco Guarnieri e estreou em 1959 sob a direção de Flávio Rangel.
[3] N.S.: Em 1971, ano do centenário da morte de Castro Alves, Gianfrancesco Guarnieri homenageou o grande poeta do final do Romantismo brasileiro com a peça Castro Alves pede passagem, encenada no Teatro Galpão, em São Paulo.
[4] N.S.: Sábato Magaldi (1927-) é crítico teatral, jornalista e professor.