“Odeio as cartas literárias, cuidadosamente preparadas, copiadas e recopiadas; eu me sento diante da máquina e deixo correr o vasto rio dos pensamentos e dos afetos”, escreveu Julio Cortázar em 1942, quando tinha 28 anos e ainda era só o projeto de um escritor.
A mudança para Paris, no começo da década de 1950, faria desse hábito de escrever cartas uma atividade quase diária, uma necessidade – durante os mais de trinta anos que viveu longe da Argentina o autor de Histórias de Cronópios e de Famas enviou milhares de cartas que tinham como destino, na maioria das vezes, a América do Sul.
Para a sorte dos amantes do gênero epistolar (e dos cortazianos), uma boa quantidade dessas valiosas missivas foi publicada em livros. Talvez o mais revelador deles seja Cartas a los Jonquières (2010), que reúne 126 cartas, 13 postais e um recorte publicitário anotado. São mensagens que Cortázar enviou ao casal de amigos Eduardo e María Jonquières entre 1950 e 1983.
Julio e Eduardo conheceram-se em meados da década de 1930, mas foi em 1946, quando Cortázar voltou a Buenos Aires após uma experiência como professor no interior da Argentina, que se aproximaram. A partida do escritor para a França obrigou os dois amigos a recorrer às cartas como instrumento para alimentar a amizade. As mensagens de Eduardo desapareceram, mas as de Julio foram guardadas por María Jonquières: “É uma lástima que as respostas de Eduardo, que podiam ser tão cômicas como assassinas, se tenham perdido”, escreve Aurora Bernárdez – primeira mulher de Julio Cortázar e encarregada até o ano passado (quando morreu) de zelar por sua obra – no prólogo do livro organizado em parceria com o pesquisador Carles Garriga.
Lidas em conjunto, essas cartas aos Jonquières funcionam como um diário e também como uma (auto)biografia de Cortázar. Ali se conhece, por exemplo, a dificuldade financeira dos primeiros anos de vida em Paris – as cartas dessa época eram quase todas escritas a mão, com letra espremida, e até as margens eram aproveitadas, tudo por questão de economia. E se testemunha o desencontro de sentimentos de alguém que foi embora do seu país porque sentia o ambiente muito carregado, mas que ainda se via preso àquela vida. “Não parti muito bem de Buenos Aires; pensei que saía com dor, mas sereno, mas acontece que agora vejo que fui embora muito pouco tranquilo…, rodeado de sombras, incapaz de afastar dos olhos (ao menos como espetáculo) a imagem de vocês todos no barco e no cais. Ir embora não é nada, a questão é perceber que há uma mecânica de chiclete que fica aderida e vai te puxando”, escreveu em novembro de 1951.
As cartas dos primeiros anos mostram um imigrante deslumbrado com a arquitetura e o ambiente cultural de Paris: “Faz quatro meses que estou aqui e de noite, ao fazer um balanço mental desse tempo, me dei conta da assombrosa familiaridade com que me movimento neste mundo. Aí está, agora, o perigo. É agora que devo vigiar minha visão, minha maneira de situar-me frente a coisas que cada vez conheço melhor […] Seria aterrador (nunca aconteceu, por sorte!) passar um dia com pressa pela Notre Dame e olhá-la com a mesma falta de intenção dedicada aos bancos ou casas para alugar. Quero que a maravilha da primeira vez seja sempre a recompensa do meu olhar”, anota em fevereiro de 1952. E arremata: “Gostaria que Paris se mostrasse sempre como a cidade do primeiro dia. Estou aqui faz 4 meses: mas cheguei ontem à noite e chegarei outra vez esta noite. Amanhã será meu o primeiro dia de Paris”.
O surgimento de personagens (como os encantadores cronópios), o processo de escritura dos livros, o cotidiano do trabalho como tradutor na Unesco, a frustração com as editoras, o desafio de verter Edgar Allan Poe para o espanhol, as muitas viagens, a preocupação com a política mundial, tudo isso está registrado nas cartas dirigidas aos Jonquières – não só ao casal, mas também aos filhos, que recebiam palavras de carinho e até pequenas histórias. Está também, e sobretudo, o cotidiano, as pequenas alegrias da vida – como o encantamento com a nova máquina de escrever (“quando chega ao final apertas uma tecla e o carro volta sozinho ao começo”) –, as dúvidas existenciais, a preocupação com o amigo que morava longe. “Não se deve resistir ao mundo, o que se há de fazer é escolher bem o mundo que preferimos e ao qual nos queremos doar; e a esse, ah, a esse há que se doar a fundo, como quando se nada, se dorme ou se ama”, foi o conselho de Julio a Eduardo, que demonstrava apreensão em relação ao futuro e insegurança quanto ao talento como pintor.
Como não podia faltar num conjunto de cartas, está também o espaço para as declarações de amor: “Vem o Natal, vem o ano-novo, e todos ficamos melancólicos, e sentiremos passar outra flecha do tempo muito perto de nós. Tudo o que eu podia dizer a vocês dois nestes dias não é material verbal, não entra numa carta”.
Julio Cortázar morreu em 1984. Está enterrado no cemitério de Montparnasse, em Paris, e não é difícil encontrar o seu túmulo. Além de cigarros e flores, sob a sua lápide há sempre cartas deixadas pelos seus leitores. Cartas, como se pode imaginar, “não literárias”.