Eu não os conhecia, mas agora vocês fazem parte de mim. Fico pensando em vocês, em seus conhecidos que também foram atingidos, e isso dói desde que vocês se foram.
Sam
“A vida continua” –, ouço dizerem por toda parte de Paris desde a trágica noite dos ataques terroristas de 13 de novembro. Dizem na esperança de que a dor passe mais rápido e que a cidade recupere o espírito vibrante pelo qual é conhecida. Mas não se cura uma ferida do tamanho de 130 mortos em um mês, e basta um olhar mais atento para perceber que o medo aparece velado em pequenos detalhes do cotidiano da capital. São olhares furtivos de ansiedade no metrô, amigos que não saem mais de casa à noite e a proibição aos alunos de permanecer em frente à Faculdade, como prevenção de fuzilamentos-relâmpago, por exemplo. A vida continua, mas mutilada, penso enquanto me aproximo da Place de la République.
Dezenas de pessoas estão ao redor do monumento central, circulando-o a passos lentos, com a cabeça baixa. Os ruídos da rua vão desaparecendo até tornarem-se um pesadíssimo silêncio de luto conforme chego perto da aglomeração. Alcanço a base da estátua e a vejo coberta de velas, flores, desenhos, retratos, todos às centenas. As homenagens começam na parte mais baixa e vão tomando a escultura aos poucos, dando cores aos alto-relevos monocromáticos mais acima. Há desde coroas de flores mandadas por países do leste asiático até livros que, de uma ou outra maneira, ligam-se ao acontecido. Um exemplar de Paris é uma festa, de Hemingway, com as páginas castigadas pela chuva, está aberto em meio aos buquês. Quem o pôs ali? É ironia? É desejo de que a cidade volte a ser festiva como sempre foi? Não muito longe, uma foto: “Lola, 17 anos”, diz a legenda na imagem que mostra a menina sorrindo com alegria inocente. Senhoras ao meu lado desatam em choro brando, abafando as lágrimas com um lenço de bolso. As pessoas depositam rosas, fitam o céu, fecham os olhos com força em atitude de quem pede pela cidade. Passou-se um mês e ainda é difícil entender os ataques terroristas do dia 13.
Pego algumas das cartas deixadas na calçada do Bataclan, casa de shows onde foi feita a maior parte de vítimas, e leio aquelas que ainda não foram tornadas ilegíveis pela chuva. “Queridos desaparecidos”, começa uma. “A França que não vai parar nunca de detestar a palavra ‘submissão’”, termina outra. São papéis de todos os tamanhos, escritos à mão e endereçados às vítimas, às suas famílias, à França e a todos os franceses, a Paris e sua festividade silenciada. Estão em francês, inglês, chinês, árabe e são desde pequenos bilhetes em cartõezinhos que se abrem ao meio até grandes folhas de caderno, preenchidas inteiramente e protegidas por saquinhos plásticos.
Entre os bilhetes que resistiam ao mau tempo, traduzo mais este:
Queridos desaparecidos,
Vocês são meus vizinhos de assento em um restaurante ou no metrô. Vocês são meus cúmplices, por acaso, em um jantar ou em um show… Vocês são aqueles que animam Paris e sua efervescência.
Eu penso em vocês, em suas vidas, na nossa imprudência e na nossa serenidade, roubadas pela violência mais inominável… Eu penso na agonia que atingiu a todos nós, nossa preciosa liberdade e nossa frágil fraternidade.
Que a sua lembrança nos faça combativos e unidos. Vocês ficam conosco. Nós não os esqueceremos jamais.