“Chers tous deux” (Meus dois queridos) – era assim que começavam as cartas de Claude Lévi-Strauss a seus pais, Raymond e Emma, enquanto passava por lugares tão diferentes como Estrasbrugo, Nova York ou Martinica. Essa correspondência do renomado antropólogo francês foi lançada recentemente na França sob o título Chers tous deux, livro que compreende o período de 1931-1942. Além da preocupação de Lévi-Strauss em enviar notícias diariamente à família, a publicação deixa visível o carinho entre os três, a preocupação dos pais em saber detalhes da vida do filho e o crescimento intelectual daquele que viria a ser um dos pensadores mais influentes do século XX.
Filho único de um pintor retratista e de uma jovem de família judia, Lévi-Strauss nasceu em 1908, em Bruxelas, onde seu pai trabalhou durante um breve período. Com o advento da máquina fotográfica, as atividades do pai diminuíram e, em razão do baixo número de encomendas que Raymond passou a receber, as condições financeiras da família sofreram baixa expressiva. Ainda assim, e já em Paris, o rapaz conseguiu vagas nos melhores colégios da cidade. Em 1931, quando foi convocado para o serviço militar, já tinha licença para lecionar filosofia. É nessa época, quando se torna soldado no 158º regimento de infantaria em Estrasburgo, na fronteira entre França e Alemanha, que as cartas reproduzidas em Chers tous deux começam.
“O que me incomoda mais é esse estado contínuo de ociosidade […] a gente quase chega a desejar a guerra para dar alguma justificativa à nossa presença”, escreve ele em carta de novembro de 1931. Os pais acompanham de perto o cotidiano do filho e não raramente lhe escrevem perguntando detalhes de sua nova vida. Por mais que o livro apresente apenas uma via das correspondências, a de Lévi Strauss, por vezes é possível imaginar o que seus pais desejavam saber nas cartas de resposta. “Agora eu respondo suas perguntas da carta de segunda-feira: 1) O travesseiro é de palha […] 2) Os ferros da cama são em formato de cerquilha […] 12) Faz muito frio, mas não estou sofrendo com ele”. O zelo parental acompanha toda a trajetória do filho, onde quer que ele esteja, o que por vezes até deixava o então jovem de vinte e poucos impaciente: “É ridículo vocês se preocuparem tanto se passam quatro dias sem receber nenhuma carta minha”, diz ainda nos tempos de Estrasburgo.
Da cidade fronteiriça, o autor de Tristes trópicos volta a Paris em 1932, onde termina o serviço militar e anuncia aos pais seu casamento com Dina Dreyfus, etnóloga que viria a ser sua primeira mulher e iria influenciar sua escolha pela antropologia: “Ela mal pode esperar para conhecer vocês”, relata em tom entusiasmado. Da capital, o casal segue para Mont-de-Marsan, onde Lévi-Strauss leciona pela primeira vez em um colégio. Dali parte para o Brasil, em 1935, após aceitar o convite para dar aulas na Universidade de São Paulo (USP).
Do decisivo período vivido em terras brasileiras, em que o pensador teve contato com tribos indígenas e resolveu de vez enveredar-se pela antropologia, não são reproduzidas quaisquer cartas em Chers tous deux. O mais próximo disso é uma carta enviada durante a viagem ao Brasil, na qual a qual Lévi-Strauss tem seu primeiro contato com um brasileiro, chamado doutor Ribeiro. “Esse meu primeiro contato com o Brasil foi difícil. É um tipo ignorante e pretensioso. Espero que eles não sejam todos assim”, confessa aos pais. Do período posterior à estada brasileira, o livro dá conta de suas viagens pela Martinica, Porto Rico e a decisão de se estabelecer em Nova York durante os anos de guerra em que acompanha tudo “muito amedrontado”, com medo de alguma consequência para os pais, o que felizmente não aconteceu.
A correspondência mostra um rico mosaico autobiográfico e revela um cotidiano em que não falta a avidez de conhecimento, refletida por meio de frequentes pedidos de romances e jornais. Monique Lévi-Strauss, última esposa do antropólogo, organizadora da edição e autora do prefácio, diz que a partir das cartas é possível montar um retrato que mostra “o homem que se escondia por detrás do pensador”. É certo que homem, pensador ou quaisquer outros rótulos, Claude Lévi-Strauss amava bem “ternamente” os pais, como terminava quase todas as cartas a eles endereçadas.