Conta-se que Virginia Woolf, depois de ler “Bliss”, tomou um porre e afirmou, em alto e bom som: “Eu morro de inveja dessa mulher”. A mulher e autora do conto é Katherine Mansfield, única entre seus pares por cujo talento, segundo consta, Woolf se sentia ameaçada. Décadas depois, não seria menor o fascínio que a escritora neozelandesa exerceria sobre as brasileiras Clarice Lispector e Ana Cristina Cesar.
Clarice sempre relembrava o modo aleatório como descobriu, sozinha, a obra de Mansfield, ao retirar da prateleira de uma livraria a coletânea Bliss – Felicidade, na tradução de Erico Verissimo, editada pela Livraria do Globo em 1940. Sem saber de quem se tratava, começou a leitura ali mesmo, em pé, e não conseguiu parar, tomada por profunda afinidade com a ficcionista: “Mas esse livro sou eu!”, teria pensado diante do volume de contos que adquiriu com seu primeiro salário de jornalista.
Quatro anos depois, ela se encantaria com a correspondência da autora, como se vê em carta de setembro de 1944 enviada ao amigo Lúcio Cardoso: “Reli a Porta estreita de Gide, sobretudo encontrei as Cartas de K. Mansfield. Não pode haver uma vida maior que a dela, e eu não sei o que fazer simplesmente. Que coisa absolutamente extraordinária que ela é”.
Ana Cristina Cesar também mergulhou nas cartas e no diário de Mansfield enquanto trabalhava na tradução comentada de “Bliss”, que lhe rendeu o título de mestre em Teoria e Prática da Tradução Literária pela Universidade de Essex, na Inglaterra. A leitura fez a poeta perceber que na obra de Mansfield, como na sua, “ficção e autobiografia constituem uma única e indivisível composição”.
Reunidas em Diário e cartas, as anotações da autora neozelandesa mostram a sensibilidade da jovem que, em 1903, após publicar seu primeiro conto na revista do colégio, a Queen’s College Magazine, decide registrar num caderno impressões, estados de espírito e ideias para contos. Ainda que depois tenha destruído as notas iniciais por considerá-las “enormes diários lamentosos”, o que se percebe desde o princípio – o diário começa em 1907 – é a bela e delicada maneira com que Katherine flagra cenas triviais do cotidiano e as transforma em rascunhos de alta qualidade literária:
Sobre o mar flutua um barco de vela cor de laranja. Agora, os pescadores maoris estão navegando – as velas brancas enfunadas pelo vento. Na praia, um grupo deles, vestindo camisetas azuis e calças grossas enroladas até os joelhos. O sol brilha sobre os espessos cabelos crespos e sobre os rostos, fazendo com que a pele tome a cor quente do âmbar. Ele brilha sobre as pernas nuas e os firmes braços trigueiros. Os pescadores estão recolhendo a rede para dentro de um pequeno barco chamado Te Kooti, a corda molhada correndo-lhes pelos dedos e caindo em místico desenho sobre a areia explodida em espuma.
A escrita supostamente confessional é convertida em exercício ficcional. Com isso, a escritora inaugura seu olhar sobre as coisas, dá forma a sensações causadas por pessoas e lugares, revela – a si mesma e aos outros – a descoberta de mais um conto, como é o caso de “Sol e Lua”, que lhe “aparece” em sonho: “Sonhei um pequeno conto, na noite passada, até mesmo com nome, que era ‘Sol e Lua’. […] Não sonhei que o tinha lido. Não, eu estava nele, era parte dele”, escreve ao segundo marido, John Middleton Murry, em 10 de fevereiro de 1918. A atividade literária é o motivo principal de suas reflexões no diário e nas cartas:
É difícil descrever o processo. Tudo por parecer inútil e por demais pretensioso. […] Mas a imperdoável, a indizível emoção dessa atividade artística – com que se pode compará-la? E o que mais se pode desejar? Para mim, não é só um caso de deixar a lareira acesa. É mais. É baixar a chama até que ela fique pequena, mas sem perder o fulgor.
A esse tema, ligam-se outros: a grande admiração por Tchekhov, a profissão de crítica literária, o amor pelo marido, a solidão que nunca a deixou, a saúde frágil devido à tuberculose, a perda do irmão, a terra natal, a relação conflituosa com D.H. Lawrence e a amiga Ida Baker (“L. M.”), além dos raros momentos em que se sentia tomada por uma súbita e inesperada alegria, como relata ao marido em carta de 10 de novembro de 1919: “Ontem, no meu quarto, no andar superior, de repente tive vontade de dar um pulinho – há dois anos não dou um pulinho – você sabe, aquele, do tipo ‘pulo de alegria’. Eu estava com medo. Fui até a janela e, por segurança, me agarrei à soleira. Depois, fui até o meio do quarto e pulei. […] Foi uma experiência maravilhosa”.
A força dessa correspondência, que é como um “pulo de alegria” cujo efeito permanece indefinidamente em quem a lê, inspirou o “Soneto a Katherine Mansfield”, de Vinicius de Moraes, no qual o poeta, já no primeiro verso, refere-se às cartas da autora – que exalam, porque guardam, o perfume da amada:
O teu perfume, amada — em tuas cartas
Renasce, azul… — são tuas mãos sentidas!
Relembro-as brancas, leves, fenecidas
Pendendo ao longo de corolas fartas.
Relembro-as, vou… nas terras percorridas
Torno a aspirá-lo, aqui e ali desperto
Paro; e tão perto sinto-te, tão perto
Como se numa foram duas vidas.
Pranto, tão pouca dor! tanto quisera
Tanto rever-te, tanto!… e a primavera
Vem já tão próxima!… (Nunca te apartas
Primavera, dos sonhos e das preces!)
E no perfume preso em tuas cartas
À primavera surges e esvaneces.
Rio, 1937