S.l., [1938]

Coelho,

Desconfio que não te chegou uma minha, pois que na de 15 de junho hoje recebida fazes perguntas já respondidas. Nela eu te dizia que foste com muita sede ao pote; que a linha da UJB[1] não comporta senão águas paradas e em dosezinhas breves; são jornalecos avaros de espaço. Nem comporta a tua prodigiosa coelhice. Sim, Coelho, porque tens, mentalmente, a soberba fecundidade dos coelhos. Pares artigos com o fácil da coelha a des­pejar no mundo ninhadas de coelhinhos…

Você, Coelho, não sabe o que é o Brasil. Comete o erro generalizado dos que não vivem nele[2] de avaliar as coisas aqui como proporcionais ao tamanho geográfico. Mas o Brasil só é grande geograficamente; em tudo o mais é Paraguai. Tudo quirera,[3] quitanda. A imprensa, os mil jornais da UJB, uma quitandinha — e em bancarrota, porque com a supressão da liberdade de vender os doces que o freguês quer, as quitandeiras tiveram de diminuir a produção — e estão na embira.

Minha impressão é que o que aqui chamamos go­verno não passa da máscara dum inimigo que nos con­quistou sem dar na vista de ninguém e agora tem como programa o retorno ao indianismo inicial. Vamos (isto é, ele vai) destruindo uma a uma as coisas criadas, como o café, a cultura, a liberdade de pensamento, etc., de acordo com um plano. O fim será acabarmos todos nus, comendo-nos uns aos outros antropofagicamente (porque caça é coisa que já não existe nos matos — nem existe mato mais), flechando-nos, tatuando-nos. E tudo isso à sombra duma imensa batina romana estendida como pálio sobre nossos oito milhões de quilômetros quadrados.

Os escritores de mais mérito, como os geniais Jorge Amado e Rubem Braga, foram arrolhados e estão mor­rendo de fome. Os demais desse tipo guardaram a pena e apodrecem escondidos. Crime dos crimes: pensar com a cabeça. Outro crime: ter talento. Outro: ter iniciativa. Outro: trabalhar…

Coelho, Coelho, essa gente aí não saberá nunca em que paraíso vive — nem você saberá nunca a sorte que teve em despegar-se a tempo duma coisa enorme, uma baleia que apodrece…

L.

Monteiro Lobato. Cartas escolhidas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1959, pp. 38-39.

[1] N.S.: A União Jornalística Brasileira foi criada por Menotti del Picchia em 1934 e comprada três anos mais tarde por Lobato.
[2] N.S.: Artur Coelho vivia nos Estados Unidos.
[3] N.S.: Milho quebrado que se dá a pequenas aves e pássaros, ou produto secundário que sobra do arroz beneficiado, de qualidade inferior.