“Quando eu crescer quero ser numismática”, era o que eu repetia quando pequena. Ficava tão vaidosa em conhecer uma palavra do mundo adulto que nunca me dei conta de que o certo seria dizer numismata. Na verdade, queria ser arqueóloga ou jogadora de futebol, mas quando fiquei sabendo que numismática existia, percebi que a palavra ajudaria muito a elevar o status do meu gosto por colecionar dinheiro velho. Minha coleção de dinheiro velho, como eu a chamava, começou de forma casual e despretensiosa, meio que num gesto de solidariedade nas cédulas e moedas que via minha mãe separando pela manhã porque haviam perdido o valor enquanto dormíamos.
Ignorando as razões que levavam a mudanças tão súbitas no câmbio corrente, lidava com a situação com muita naturalidade e colaborava com a catástrofe econômica, torcendo diariamente pros dinheiros todos deixarem de valer o mais rápido possível e, assim, poderem integrar o pequeno museu que eu recém inaugurara em uma caixa plástica de barbeador elétrico.
Pode-se dizer que foram muito bons os saldos desse meu primeiro estágio no campo do amor pelas coisas sem finalidade: conheci Cecília Meireles de cabelos curtinhos na nota de 100 Cruzeiros; na de 50 Cruzados Novos, os olhos tristes por trás dos aros grossos dos óculos de Carlos Drummond de Andrade; Machado de Assis, sempre muito sério nos seus 1.000 Cruzados, só não dava mais medo do que a cara de pai que vai brigar de Carlos Gomes, com seu piano de cauda nos 5.000 Cruzeiros.
Quando novos dinheiros velhos começaram a escassear, dei início a uma edificante coleção de chaveiros: Formandos 1974 São Borja 11ª Turma; Prodomo Administradora de Imóveis LTDA; Eletrotécnica Germano; Esquadrias Metálicas Burtet; Carlos Alfredo Revendedor Autorizado Olivetti. Podia passar horas escolhendo qual deles eu usaria quando enfim me concedessem o direito a ter também uma chave da nossa casa.
O processo colecionista tinha qualquer coisa de navio pirata, de mistério de bolso, de ato de resistência contra um mundo que não se mostrava muito empenhado em incentivar paixões que não ostentassem uma utilidade visível. Para além dos objetos em si, havia a surpresa do seu inesperado surgimento, o prazer de olhar pra eles de um jeito diferente, de organizá-los enquanto espécie única e de sabê-los a salvo de algum dilúvio. De modo que eu colecionava o que podia, tendo mesmo ousado praticar o colecionismo de formigas vivas em uma gaveta da escrivaninha – tentativa cujas consequências prefiro não comentar. Colecionava minhas coleções sem nenhuma pressa e nenhuma afetação, com dedicação, mas muito distraidamente. Tão distraidamente que, em algum momento, esqueci que colecionava, comecei a pensar em outras coisas, e acabei esquecendo de ser numismática também.
Tudo isso já ia longe quando, um dia, um amigo me disse que havia comprado cartas em uma feira de antiguidades. Não compreendi a informação de imediato, mas senti no coração um tranco de caminhão que não viu o quebra-molas: a freada foi tão brusca que o pescoço, ainda hoje, dói um pouco aqui. Até então, nunca havia imaginado que cartas alheias podiam ser adquiridas em mercados de rua em troca de dinheiros ainda em circulação.
Na primeira oportunidade, fui à tal feira em busca desses papéis sobreviventes e, para minha felicidade, ali estavam alguns deles, localizados entre uma boneca sem cabeça e o que havia sobrado de um Castelo de Grayskull. Voltei pra casa estranhamente comovida, segurando forte as cartas nas mãos; mal sabia eu, então, que seriam apenas as primeiras de quase três mil delas que tenho hoje.
Mesmo após dez anos de garimpo e leituras, ainda dedicadas e ainda distraídas, é muito difícil precisar o que há dentro dessa coleção tão minha de vidas outras. Há algo além do alívio do amor correspondido de Lourenço, e algo além das lamúrias do amor não correspondido de Geraldo; algo mais genérico que os sinceros pêsames do pessoal de Caruaru, e mais específico do que a receita de vatapá de que o Magalhães gosta. Por mais que eu procure, há sempre algo por descobrir entre as recomendações para que Martha tome bastante leite e as fofocas sobre o viúvo de Marina do cartório da Rua José Napoleão; nem é só o registro do senhor Dietrich de perdas e danos decorrentes da guerra durante a ocupação japonesa. Algo de mais bonito, de mais triste e de maior anima e habita esse Museu Particular de Esquecimentos Privados.
Tenho a função de ser a guardiã temporária dessas impressões anônimas, desses restos de vidas desconhecidas que, por uma manobra da sorte, falharam em desaparecer por completo. Trabalho na seção de reversão de naufrágios, no corpo de bombeiros da lata de lixo da História. Afinal, talvez não estivesse tão errada ao dizer que seria numismática. Só não previ a série de caminhos tortos que me dariam as chaves com que adentrei as mais bem guardadas salas do tesouro nacional.