[Montevidéu], 11 de novembro de 1964

Meu querido mestre Anísio,

Só agora ouso escrever-lhe pelo temor que tinha de ainda mais comprometê-lo. Uma das coisas que mais me doeu de tudo o que passou foi ver repetir-se, pela segunda vez, sobre sua cabeça, a onda de despotismo. E, também, o pouco que conversávamos nos últimos meses em que eu vivia naquela sofreguidão, frequentemente sem o valor de enfrentar os problemas com um senso justo.

Bem sei das dificuldades que lhe criei com minha impaciência. Isto é tanto mais grave porque se me perguntassem pelo encontro mais importante de minha vida, eu diria que foi o nosso encontro. O senhor não avaliará o quanto eu lhe devo e como sou consciente de que em educação nada mais fiz do que pôr meu dínamo de agitação zumbindo em torno de suas ideias.

Vivo aqui na mesma correria de sempre. Dou um curso de antropologia na Universidade,[1] com que me mantenho; escrevo um livro, mas me ocupo principalmente de política. E é duro, querido, o sentimento de frustração que dá a ver que nem depois de sete meses de exílio impostos por uma ditadura, nem assim conseguimos unir as chamadas forças progressistas, divididas hoje como ontem em bandos mais hostis uns aos outros, do que ao inimigo comum.

Somos uma liderança bem ruinzinha. No poder nos comportamos como candidatos em campanha eleitoral, disputando uns aos outros um esquerdismo vazio. No ostracismo, ficamos a depender de que outros nos chamem novamente ao cenário, sabendo que muito pouca saudade deixamos do poder contraditório que exercemos. Valeu a pena? Que ficou da experiência? Um amadurecimento no povo da consciência do atraso e da deliberação de progredir através das reformas? O descaramento da aliança da oligarquia nacional com o imperialismo?

O certo, a meu ver, é que nenhum governo teve maiores chances de conciliar e de compor-se com a oligarquia para conservar o poder, nem se esforçou mais, apesar das contradições, para acertar, enfrentando problemas capitais. A luta está aberta, agora já não obrigatoriamente pelo caminho pacífico. Trata-se, doravante, de forçar as transformações indispensáveis por qualquer caminho e sem quaisquer aliados, já que a Aliança[2] em que tantos confiavam, faliu redondamente.

Que é feito dos liberais ianques? Daqueles que apreciaram o “New Deal”[3] e o Kennedy dos primeiros meses? Nossa atitude é tão próxima à deles que sua ausência e seu silêncio nos deixam isolados. Quem é mesmo esse vice-presidente eleito?[4] Teria valor para liderar um movimento que nos permitisse sair do dilema de escolher entre a condenação a nos resignarmos com a miséria ou o caminho soviético do desenvolvimento?

Todos saudamos em De Gaulle a possibilidade de uma aliança para trilhar este terceiro caminho. Fracassada a América na tarefa histórica de criar modelos congruentes de desenvolvimento, a nós, brasileiros, é que caberá fazê-lo, dentro dos valores democráticos, se for praticável, de qualquer modo, se inevitável.

Gostaria imensamente de lhe falar e de ouvir sua apreciação sobre os acontecimentos, porque estou certo de que uma compreensão clara da experiência vivida é indispensável para marcharmos à frente. Apesar de tudo, encontro o peito cheio de esperança de voltar logo e retomar o processo.

Conversando com JK em Paris, ele me lembrava que tem 63 anos e Jango só 46, e que dentro de dez anos será ainda mais novo do que ele agora. Respondi que minha conta não era por décadas, nem por anos, mas por meses. A razão me diz que não é assim, mas um élan que não sei de onde vem me está dizendo que breve estaremos mandando a gorilada embora e retomando posição lá dentro pra prosseguir na luta.

Tenho acompanhado por cartas e jornais o ambiente em nossa universidade e a perseguição aos colegas do Rio, de S. Paulo, Porto Alegre, numa odiosidade sistemática à cultura. Pelo que sei, nossa casa começa a reagir, o pessoal de ciência começa a chegar e vai dando substância à instituição. Se não faltar um mínimo de recursos, nossa UNB[5] sobreviverá sem deformações insanáveis. Soube, por exemplo, que nossos jovens instrutores completaram o mestrado, o que é bom sinal. Prosseguem as obras do minhocão, embora a ritmo tão lento que levaria dez anos para concluir-se. Mas muito antes lá estaremos para pôr o pé no acelerador. Zeferino,[6] muito policial nos primeiros dias, quando fez prender muita gente para agradar os militares, está, agora, procurando fazer média para o futuro como bom moço.

Querido. Mande-me notícias. Abrace por nós à Emilinha[7] e não me queira mal por meus exageros.

Darcy

Fundação Getúlio Vargas/ CPDOC – Arquivo Anísio Teixeira

[1] Darcy lecionou antropologia na Universidade da República Oriental, em Montevidéu, até 1968, quando retornou ao Brasil. Desenvolveu ainda uma série de trabalhos relacionados com o sistema universitário, como o Seminário de Reforma da Universidade da República e a organização da Enciclopédia de Cultura do Uruguai.
[2] N.S.: Provável referência à ideia de pacto entre uma burguesia nacional consciente e os setores mais dinâmicos da classe trabalhadora.
[3] N.S.: Conjunto de medidas implementadas pelos Estados Unidos entre 1933 e 1937, sob o governo de Franklin Delano Roosevelt, com objetivo de recuperar a economia americana.
[4] N.S.: Barry Goldwater, republicano, eleito em 3 de novembro de 1964, na chapa de Lyndon Johnson.
[5] N.S.: Em 1962, Darcy Ribeiro foi o fundador e primeiro reitor da Universidade de Brasília. Anísio Teixeira assumiria a função de vice-feitor e, pouco depois quando Darcy foi nomeado Ministro da Educação no governo durante a presidência de Jânio Quadros.
[6] N.S.: Zeferino Vaz (1908-1981). Médico que, entre 1951 e 1964, foi fundador e diretor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto e, anos depois, trabalharia na construção da Universidade de Campinas entre as décadas de 1960 a 1970.
[7] N.S.: Emília Ferreira Teixeira, mulher de Anísio Teixeira.