“O tempo das cartas passou”, afirma Sérgio Rodrigues na apresentação de Cartas brasileiras, livro que organizou e que reúne, conforme se lê no subtítulo, correspondências históricas, políticas, célebres, hilárias e inesquecíveis que marcaram o país.

Tem-se aí a trilha de um Brasil representado, entre outras, por figuras como Lampião, cuja ameaça de invadir a cidade potiguar de Mossoró, em bilhete de semianalfabeto dirigido a Rodolfo Fernandes, o prefeito, causa riso ao leitor de hoje. A contundência da ameaça se dilui nos erros de ortografia, sem esquecer que tamanho terror não passou do papo: graças à bravura do povo, Mossoró ganhou a glória, até hoje festejada, de ter resistido e vencido o rei do cangaço, impedindo-o de entrar.

Esse mesmo Brasil analfabeto, ou quase, por motivos inversos fascinou Albert Einstein, que, depois de visitar o país, em 1925, e de se encantar com o que ouvira falar do marechal Rondon, escreveu ao Comitê Nobel da Noruega indicando o nome do militar e sertanista brasileiro para a prestigiosa homenagem. Deve ter sido esse o nosso primeiro flerte com o prêmio com que sonharia Jorge Amado. Antes de Einstein, um outro estrangeiro se deslumbrara com o já cantado Brasil da flora e da fauna exuberantes. Era Charles Darwin, que em 1832, de Salvador, escrevia ao pai para dizer do “puro deleite” que era ver essas terras.

Ao rápido olhar de estrangeiros que aqui estiveram, o organizador  acrescenta uma seleção de cartas notáveis sob diferentes aspectos, todas – percebe-se logo –, resultado de colheita criteriosa que seduz o leitor a cada página. Cartas antológicas, como a de Pero Vaz de Caminha, não poderiam faltar. Estão nessa categoria ainda a carta-testamento de Getúlio, o relato de Luiz Gama, líder abolicionista e homem de letras contando que o pai o vendeu como escravo com objetivo explícito de ganhar dinheiro.

É interessante constatar que começa a fazer parte do cânone a carta que José Freire Silva, pai do pianista Nelson Freire, lhe escreveu a respeito do reconhecimento do talento do filho e de seu destino de artista. E ainda o apelo de Clarice Lispector, “casualmente russa”, em carta a Getúlio Vargas, pela oficialização de sua cidadania de brasileira. A justificativa? A mais simples: não elegeria outra pátria, senão o Brasil.

Não é de espantar que alguns dos textos mais bonitos do livro tenham mulheres como remetentes. A antologia ressalta a firmeza e inteligência da imperatriz Leopoldina ao incentivar o marido, d. Pedro I, a declarar a independência do Brasil: “o pomo está maduro, colhei-o”; a ternura de dona Amélia de Leuchtenberg, segunda mulher de d. Pedro I, que, obrigada a acompanhá-lo de volta para a Europa, despede-se do enteado,  d. Pedro II, menino de cinco anos de idade, ainda no berço; a coragem da baiana Ana Néri, aos 50 anos de idade e com dois filhos lutando na guerra do Paraguai, oferecendo-se ao governo de seu Estado para acompanhar o terceiro filho, estudante de Medicina que escolheu ajudar na frente de combate como profissional de saúde; a lucidez heroica de Olga Benário em carta ao marido, Luís Carlos Prestes e à filha, despedindo-se, consciente da iminência da morte no campo de concentração, um dos documentos mais pungentes do livro; o destemor da estilista Zuzu Angel, em 1971, respondendo à mulher de um general para devolver a bofetada moral que recebera da insensibilidade da destinatária, que não lhe reconheceu a dor de perder o filho, Stuart Angel, torturado e morto no Centro de Informações da Aeronáutica; a gratidão de Elis Regina ao primeiro filho, João Marcelo Bôscoli, simplesmente pelo fato de ele ter nascido.

São cartas de mulheres extraordinárias que, na dor, na alegria ou na luta, como a carta de Bertha Lutz reivindicando os direitos das mulheres, em 1918, expressam com vigor sentimentos femininos legítimos.

Ainda da pena feminina, não menos tocante é a carta de amor de Maísa a Carlos Alberto. Abandonada, ela escreve:

[…] a única coisa que me resta é fazer como os tolos infelizes, ou seja, emudecer, deixar que os meus olhos, que são a minha verdadeira boca, saibam, com a dignidade que só os cães têm, fazer do silêncio a minha forma de te acompanhar, de estar contigo nesta ida tua que eu não entendo, mas devo.

E aqui me vêm os versos de Manuel Bandeira, no poema que dedicou à musa da fossa: “Os olhos e a boca de Maísa se entendem os olhos dizem uma coisa e a boca de Maísa se condói se contrai se contorce como a ostra viva em que se pingou uma gota de limão”.

Variação sobre o tema amor, este, cheio de esperança, encontra-se na carta de pedido de casamento de Torquato Neto para Ana Duarte. Não se podia pensar que tanta graça, originalidade e ternura acabariam em tragédia – informa a contextualização da carta: Torquato se suicidaria, aos 28 anos, deixando a mulher com um filho e o bilhete: “Ana é uma SANTA de véu e grinalda com um palhaço empacotado ao lado”.

Entre outras revelações, o leitor depara com a espantosa erudição de Glauber Rocha em carta ao tio, escrita aos treze anos de idade.

Assim como os dados informativos sobre a carta de Torquato Neto, todas as contextualizações do livro,  que aparecem ao lado das cartas,  têm a medida certa, linguagem atraente, e induzem à leitura.

A pesquisa iconográfica é primorosa. Fac-símiles de documentos ou fotos  tomando página inteira, como as de Ana Cristina Cesar e Paulo Freire,  contribuem para a harmonia do projeto editorial e tornam a seleção epistolográfica ainda mais estimulante.