São Paulo, 3 de julho de 1943
Erico Verissimo, estou numa sala onde trabalho, isto é, onde devo deixar todos os dias num livro, fincado como um marco, o vestígio da minha passagem. Em outros termos, funcionária pública, a pior funcionária pública que existe no mundo. Leio romances enfurnados na gaveta, tenho o ar dolorido para que não me deem serviço e, quando me obrigam mesmo, faço que nem o meu nariz, só para que não caiam na tolice de me utilizarem de novo. Ainda por cima, escrevo meus contos nesses blocos oficiais que – diga-se de passagem –, são feitos de ótimo papel. Veja você que horror! Quisera ser como as outras moças, diligentes e boazinhas, que, no momento que descansam, sentem o remorso de estar explorando os cofres públicos. Quisera ser assim. Mas já vi que não adianta, mesmo. Sento-me à mesa com as melhores intenções. E eis que, de repente, o meu olhar vai dançarinando, dançarinando pela sala, pelos móveis, atravessa a pesada cortina de feltro, atravessa os vidros da janela, começa a circular pelas ruas, vai indo, vai indo… Pronto. Quem diz de voltar!… Entrou ainda há pouco numa confeitaria. Numa mesa, estava um moço e uma moça. Ela diz:
– Você gosta de alpiste?
– Por que, querida?
– É que você é muito bom de bico.
Dá uma risadinha. Ele dá outra. Dá uma risadinha e pensa que foi ligeiro demais. É preciso retroceder um pouco.
– Mas você não me entendeu! Maliciou, meu amor! Não é isso que está pensando…
Ela acende o cigarro. Traga. A fumaça vai saindo em formato de rosquinhas.
– É que dinheiro nunca me fez frente. Por amor, vou até pros quintos; vou mesmo. Agora, falou em dinheiro, a coisa mudou.
Ele segurou-lhe a ponta do dedo. Mas era mesmo um besta! Tudo tão simples! Ele é que estava complicando. O caminho agora era um só:
– Dinheiro, querida, dinheiro! Que me importa o dinheiro se sou um desgraçado! Minha mulher não me compreende, nunca nos entendemos, sou como um estranho naquele lar.
Disse e pendeu a cabeça para o peito, um ar fatigado na fisionomia. Ela tomou-lhe as mãos e procurou-lhe o olhar para mostrar que o compreendia:
– Eu sei, eu sei… e tem filhos?
– Tenho, tenho cinco anjinhos que me impedem de fazer uma loucura!…
Apertou num desespero a cabeça entre as mãos. Ela acalmou-o, compreensiva. Não, não devia fazer loucuras!
O garçom ronda a mesa. Namorados são assim mesmo. Muita fala, pouca despesa. Está de péssimo humor; chegou a notar que eu estava espiando. E me botou pra fora.
Erico Verissimo, na rua outra vez, passei por uma livraria. Vi o seu livro. E voltei para lhe escrever. Sabe de uma coisa? Estou metida num romance.[1] Ah! Eu acho que até o fim do ano, termino. Numa outra carta, eu contarei como vai ser. Já tenho todos os tipos, enredo, papel… Agora, em setembro vou me candidatar a uma bolsa de estudos. Tenho uma vontade louca de viajar e, como presentemente não espero heranças nem possuo pretendentes “abacanados”, vai ser preciso mesmo ir desse jeito. Tudo vai depender de “cartucho”, que sei bem como são essas coisas, mas tenho esperanças… Ouça, quando tiver tempo, escreva.
A muito amiga,
Lygia
Acervo Erico Verissimo/ IMS
[1] N.S.: Lygia Fagundes Telles publicaria Praia viva – livro de contos – no ano seguinte. Só em 1954 lançaria o romance Ciranda de pedra. .