Mãe é: não morrer.
Clarice Lispector
A correspondência entre pais e filhos enseja afeto – nem sempre positivo, é verdade, o que nos leva quase de imediato a pensar no clássico Carta ao pai (1952), de Franz Kafka, escrito por volta de 1920 num jorro magoado como resposta à frieza de Hermann Kafka à notícia do terceiro noivado do já autor de A metamorfose.
Salvaguardada no acervo do Departamento de Literatura, no IMS-Rio, a correspondência familiar é uma fatia generosa em que se pode perceber o contato dos autores com seu primeiro núcleo parental. Estão aqui grandes poetas, reconhecidos cronistas, cultuados nomes da literatura, sim, mas suas cartas deixam ver algo para além do palco das letras. Remetentes ou destinatários são também filhos, mães e pais em tempo integral, sem prescindir dos cuidados e clichês que frequentam a relação.
Recém-chegadas – mas já higienizadas, catalogadas e disponibilizadas ao pesquisador –, estão, no acervo, 217 cartas escritas por Elsie Lessa ao filho, o jornalista Ivan Lessa. Nessas duas centenas de documentos há mais de meio século de notícias espalhadas por três continentes e alguns tantos países.
A correspondência entre os dois, que seguiria até os anos 2000, começou em 1942, quando Ivan não passava dos 7 anos: Elsie precisou deixá-lo no Brasil por um tempo para acompanhar o marido, o também escritor Orígenes Lessa, que participava do programa de intercâmbio cultural criado pelo governo Roosevelt. Dos Estados Unidos, a mãe, atenta aos gostos da criança, envia-lhe cartões-postais de motivos geográficos dirigidos ao “filhinho querido”, ao “doce arrumador de mapas”.
Mas é em 1968, no meio do turbilhão político brasileiro, que mãe e filho se separam: Ivan decide se mudar para Londres, onde trabalhará como redator e locutor do Serviço Brasileiro da rádio BBC. Do Rio de Janeiro saíam quase semanalmente missivas endereçadas a Bolton Gardens, residência de Ivan, no bairro de South Kensington, cheias de demonstrações de saudade e preocupações com uma gripe ou outra que o filho, já na casa dos 30, poderia ter.
Vale atenção: Elsie não era uma mãe comum. Atuou como cronista de mão cheia e exerceu a profissão com maestria por mais de 50 anos no jornal O Globo. Essa informação biográfica faz toda a diferença. A maternidade é coisa que não se separará de sua função (para não dizer vocação) jornalística. As cartas, embora de caráter trivial, com notícias pessoais e sem grandes agitos, ganham notas de lirismo e rigor de uma profissional das letras. É numa dessas, então, que Elsie conta seu plano: publicará na sua coluna “Globe-Trotter” a carta que o filho lhe envia de Londres, contaminando, dessa forma, as instâncias público-privado:
Meu filho, sua carta estava uma beleza de bem escrita e harmonia interior. Tirei dela todas as referências pessoais e virou uma “Carta de Londres”, que deve sair amanhã. Te mando. Se você tiver alguma objeção a isso, me diga, sem susto, que não as transformarei em crônica, como faço, às vezes, com as de Anésia, ou as de Hélio Eichbauer, quando me pareciam do interesse também dos leitores.
Quem espera encontrar algum comentário sobre a situação política brasileira nestas cartas, irá se decepcionar. A ditadura militar é tema que passa ao largo. Nem mesmo a prisão do editor Ênio da Silveira e de Paulo Francis, colaborador em O Pasquim e amigo pessoal de Ivan, parece abalar a serenidade da correspondência familiar, como se pode ler nesta carta que a mãe envia ao filho em 21 de dezembro de 1968:
Aqui tudo azul, a não ser as novidades políticas, que aí vocês devem saber, talvez melhor que nós. Você sabe que entendo e me interesso pouco pelo assunto. Muita gente presa, o que chamam aqui (prisões de advertência), muitos já saídos, como o Adolfo Bloch. […] Todos bem tratados. Falei com a tia do Paulo [Francis], queria levar uns cigarros para ele, mas parece que não pode receber visitas. Em todo caso, tentarei. […] Estou comentando para você não pensar que as coisas são mais graves do que são. À distância, tudo parece pior. Sossegue pelo nosso lado tudo vai bem, calorão começando, apartamento ainda não pronto, o bom é preparar a viagem.
Por meio das cartas acessamos os dias do “chantilly da intelectualidade carioca”, como bem lembrou o jornalista Sérgio Rodrigues: a rotina de Elsie Lessa inclui jantares no Copacabana Palace, encontro com Negrão de Lima, prefeito do Rio de Janeiro de 1965 a 1971, ginástica pela manhã e banhos de mar com Niomar Moniz Sodré Bittencourt, dona do jornal Correio da Manhã.
Figuram ainda notícias sobre O Pasquim, periódico em que Ivan Lessa colaborou à distância e que o tornou conhecido nacionalmente. Elsie, é claro, não esconde certo orgulho coruja ao ouvir de uma menina desconhecida no salão de beleza: “Você é mãe do Ivan Lessa?”.
O ciclo intenso de missivas da mãe ao filho é interrompido em dois períodos.
Em um primeiro momento, de 1972 a 1978, quando Ivan Lessa retorna de seu exílio londrino voluntário. Por aqui, eventos de maturidade: une-se a Elizabeth Fiúza, nasce sua única filha Juliana Fiúza, trabalha para a TV Globo e assume a editoria do já mencionado Pasquim.
Até retornar para Londres com família, com tudo.
Em um segundo momento, é Elsie Lessa e seu companheiro, Ivan Pedro Martins, que se mudam para Londres para estar perto dos Fiúza-Lessa e acompanhar o crescimento da neta Juliana.
A troca de correspondência entre mãe e filho só seria retomada, então, em 1985, quando Elsie e Ivan Pedro Martins vão definitivamente para Cascais, em Portugal, de onde ela escreverá ao filho, em 20 de março de 1986: “Somos gutemberguianos. Em letra de máquina nunca nos desentendemos”.
Não só em letra de máquina. As mais de duas centenas de correspondência são também um passeio por certa evolução tecnológica das últimas décadas: cartão-postal, fax, telegrama, cartas datiloscritas e e-mail, já às portas do século 21. Não importava o meio, o certo é que, de Cascais, onde Elsie morreria em 2000, aos 87 anos, nunca deixou de escrever a Ivan Lessa.