por Gustavo Zeitel*
Em meio aos escombros causados pelos bombardeios do Estado Islâmico, um carteiro tenta seguir com suas andanças por uma cidade do Oriente Médio. A última carta de Correio noturno (Tabla, 2020), romance da escritora libanesa Hoda Barakat, tem na força destrutiva o último pilar de um mundo em ruínas. Nas guerras, não só os prédios são reduzidos a pó. As cartas – as histórias – dissolvem-se nas ruas, morrem pelo caminho. Trancado em uma loja dos Correios, o carteiro, solitário, ouve música no rádio de pilha. As bombas despencam do céu. As bombas caem na cidade. “Termino de escrever minha carta para qualquer eventual visitante. Eu a coloco bem à vista ao lado do arquivo das cartas classificadas. É que eu posso muito bem morrer antes que alguém venha até aqui. Nunca se sabe!”, escreve.
As últimas linhas de Correio noturno sugerem, na morte do carteiro, a falência da comunicação, último nível da força destrutiva do romance, vencedor do International Prize for Arabic Fiction de 2019. Nascida no ano de 1952 em Bsharré, Barakat mudou-se, ainda na juventude, para Beirute, onde estudou literatura francesa e libanesa. Em 1975, decidiu cursar doutorado em Paris, mas logo teve de voltar ao Líbano, por causa da guerra civil. Nesse período, trabalhou como professora, tradutora e jornalista. Dez anos depois, publicou Za’irat (Women Visitors), seu primeiro livro. Em 1989, voltou a Paris, onde mora até hoje. Após publicar Hajar al-Dahik (The Stone of Laughter, 1990) e Ahl el-Hawa (People of Love, 1993), é considerada uma das principais vozes da literatura árabe contemporânea.
Cinco cartas antecedem a palavra final do carteiro. A primeira missiva narra a história de um imigrante árabe ilegal, negado pelo tráfico de drogas e por uma célula terrorista. Via sua vida passada com pesar. “Queria escrever para minha mãe, quando ela me colocou no trem, sozinho. (…) Quando aquele trem pegou velocidade, uma escuridão, parecida com o anoitecer do inverno, caiu sobre mim”. Como nas demais cartas, não sabemos o nome do remetente, nem mesmo seu país de origem. Consciente da natureza introspectiva da escrita epistolar, Barakat utiliza-se de longos parágrafos para investigar a vida de seus personagens em diferentes momentos. Falido, o primeiro remetente escreve à amante, relatando a luta contra a cocaína e a dor da saudade:
Ah, para dizer como fiquei quebrado, falido e sem documentos. Isso não muda em nada minha relação com você. Eu não estou escrevendo agora para te ter de volta. Talvez ela seja, essa carta, minhas últimas palavras. Eu não tenho ilusões (…) Se você viesse agora, poderíamos, juntos, esquecer tudo. Eu diria: “Fique ao meu lado, perto da janela, e vamos olhar pelo vidro essa noite linda, a cidade que se espreguiça sob suas luzes e vai se entregando ao sono”.
Com particular engenho, cada personagem subsequente encontra, sem querer, a carta do remetente anterior, o que é sempre motivação para a escrita de sua própria missiva. “A carta que encontrei (…) me deixou muito intrigada. É sobre um jovem que a escreveu num quarto mobiliado barato, numa rua popular próxima. Mas como chegou até aqui?”, indaga uma mulher de meia-idade. Em Correio noturno, nenhuma carta chega ao seu destinatário. Nenhuma história se faz. A epístola da mulher, que espera em um quarto de hotel a chegada de um amor de juventude, vai parar no aeroporto, onde um ex-torturador a encontra.
Os personagens de Barakat são expatriados e, destituídos de toda humanidade, abandonados no vazio dos dois principais temas do romance: o tempo e o território. O aeroporto constitui o cenário ideal para Correio noturno. Nele, milhares de pessoas transitam todos os dias, com o tempo de aterrissagens e decolagens marcado pelos painéis coloridos. Em toda carta do livro, o tempo presente é contaminado pelo passado, muitas vezes o motivo para a emigração. Escrevendo à mãe em tom confessional, a linguagem do ex-torturador não é menos crua do que as outras histórias do romance, uma vez que sua vida é moldada pela brutalidade. A violência esteve presente quando sua mãe cuspiu em seu rosto ou quando seu pai o espancava. Criminoso, um dia foi levado pelos soldados:
Ninguém me disse por que os soldados vieram e me levaram de casa. Eles começaram a me bater, sem interrogatório nem investigação ou acusação. Me batiam e depois me deixavam no chão antes de me conduzirem a um pequeno quarto aonde voltavam para me arrastar e me espancar novamente. (…) Não tem como contar os detalhes agora para você, mas eles me quebraram. Urinavam e defecavam em mim. E quando eu estava nadando em urina e fezes, traziam dos banheiros baldes cheios de excrementos e jogavam em mim.
Seguindo o fio epistolar, uma mulher encontra a carta do criminoso em um aeroporto, por onde ele tentava fugir. A remetente escreve ao irmão, que está preso, e relata as dificuldades de sua vida desde a época em que vivia em família. Aos quatorze anos, sua mãe a forçou a casar com um homem. Infeliz, decide pelo divórcio e, em um país religioso, opta pela expatriação no Ocidente. Passa a trabalhar como faxineira e manda dinheiro para a mãe, que ficava com sua filha, fruto do matrimônio. “Chorei lágrimas ressentidas por minha vida e decidi me prostituir, ser uma puta, uma vadia. Afinal, qual a diferença entre uma humilhação e outra? Só o dinheiro me afastaria um pouco do cheiro dos banheiros e da sujeira deste mundo, já que minha mãe, minha própria mãe, começava a me oprimir”, relata.
Após sofrer um estupro, a mulher resolve trabalhar em um aeroporto – claro. Decide pegar a filha em seu país de origem, mas descobre que sua mãe havia vendido a própria neta a um bordel. A radiografia da brutalidade continua na missiva em que um homem gay, forçado a deixar a sua terra natal, apaixona-se por um rapaz soropositivo:
Quando ele se recusou a ser internado num hospital, eu mesmo tive de lavá-lo e alimentá-lo, aliviar a dor da sua pele, já colada nos ossos e tomada por pústulas e ulcerações. Eu era como uma freira delicada, limpando suas muitas feridas, todas as noites e a cada manhã. Eu o pegava em meus braços como uma criança e, devagar e com delicadeza, limpava a pele do seu corpo que minguava, com água de rosas, cobria suas chagas com gazes quadradas sem esparadrapo, trocava e lavava os lençóis, batia no liquidificador tudo que podia para alimentá-lo antes de descer e secar os lençóis nas máquinas coletivas e ir comprar o que precisávamos.
Sem nome e sem lugar, cada personagem do livro é raptado pela violência descritiva de Barakat. Apostando na fluidez epistolar, Barakat escreve um romance interessante e original, cuja importância reside na engenhosa retratação do atual fluxo migratório. Com suas cartas nunca enviadas, nunca recebidas, Correio noturno diagnostica a falha da comunicação na contemporaneidade, em relatos que dimensionam a tragédia de parte expressiva da população do Oriente Médio, náufraga em países estrangeiros.