Tenho, desde já, uma testemunha nos céus, e um defensor nas alturas; intérprete de meus pensamentos
junto a Deus, diante do qual correm as minhas lágrimas.
Livro de Jó 16:20-21
Ao percorrer o material do arquivo do IMS, deparei-me com uma crônica de Nelson Rodrigues no Jornal do Brasil de 13 de junho de 1979, contendo carta sua dirigida ao então presidente da República, general João Batista de Figueiredo, em que ele pede a libertação de Nelson Rodrigues Filho, preso desde março de 1972, sob acusação de pertencer ao movimento de guerrilha urbana MR-8. Lembrei-me então, por uma dessas associações previsíveis, de correspondência similar em que Carlos Lacerda, então governador do estado da Guanabara, quinze anos antes, reivindica informalmente ao juiz-auditor José Tinoco Barreto a revogação da prisão preventiva de Astrogildo Pereira, jornalista, escritor, comunista e um dos fundadores do Partido Comunista do Brasil.
A junção desses dois incidentes cutucou-me a memória de maneira singular: durante parte expressiva de vida política de minha geração (a que atingiu a maioridade na segunda metade da década de 1960) cartas como essa não eram incomuns: às vezes assumiam forma reservada, como a de Lacerda, algumas eram divulgadas pelos autores como a de Nelson Rodrigues, uma maneira de divulgar a causa. Outras teriam várias assinaturas.
São “cartas de intercessão”, consistem no pedir em favor de outro. O outro em questão encontra-se inerte, paralisado, à mercê unicamente da magnanimidade de uma decisão de poder que possa modificar a sua sorte. E o intercessor depende, para o bom resultado da empreitada de sua proximidade – identificação, respeito, intimidade – com a força que decide. As três partes estão perfeitamente cientes de todos esses elementos e dos seus respectivos papéis. A função da carta vem a ser praticamente ritual: é uma encenação e como tal tem o caráter de um mecanismo destinado a impressionar um público,¹ neste caso quem detém o mando absoluto quanto à matéria.
Vejamos como esse jogo de cena opera em três casos distintos. Aos dois exemplos mencionados, acrescento o caso de Robert Brasillach, escritor francês, condenado à morte por colaborar com o inimigo, quando da ocupação alemã da França na segunda guerra mundial.
Robert Brasillach
Coetâneo de Sartre, ambos nasceram em 1909, foram igualmente contemporâneos na École Normale Supérieure, instituição que formou boa parte da “intelligentsia” francesa. “Intelectuais públicos”, tiveram destinos políticos simetricamente opostos. Brasillach esteve próximo ou participou de todos os movimentos de extrema direita na França do ante guerra. A partir de 1932 é jornalista e dirige Je suis partout (100 mil exemplares), jornal antidemocrata, nacionalista e antissemita. Depois do “encontro de Montoire”, entre Hitler e Pétain, torna-se um colaboracionista militante e por isso foi julgado e fuzilado por traição.
Seu julgamento foi cercado de controvérsia: tratava-se de um intelectual conhecido e de alguém que não participara de atividades administrativas ou decisórias do governo de Pétain, mas cujo papel de propagandista do regime envolvia o antissemitismo sistemático ou denúncias, muitas vezes de pessoas especificamente identificadas, contribuindo assim com a repressão do regime e sua política de deportação dos judeus aos campos de concentração.
Surgiu uma movimentação entre alguns intelectuais para obter a graça presidencial, suspendendo a execução e revertendo-a em prisão perpétua. No romancista François Mauriac encontrou-se o intercessor ideal: o escritor tinha contribuído para a resistência e assumira o papel de defensor ferrenho do Chefe de Estado, o General de Gaulle de quem se tornara amigo próximo.
Reuniu-se, assim, um grupo de 53 artistas de várias origens ideológicas entre os quais se encontravam o próprio Mauriac, Paul Valéry, Paul Claudel, Albert Camus, Jean Anouilh, Jean-Louis Barrault, Jean Cocteau, Vlaminck, Marcel Aymé, Colette, Gabriel Marcel. Acordaram-se em torno da seguinte petição:
Les soussignés, se rappelant que le lieutenant Brasillach, père de Robert Brasillach, est mort pour la Patrie le 13 novembre 1914 demandent respectueusement au général de Gaulle, chef du Gouvernement, de considérer avec faveur le recours en grâce que lui a adressé Robert Brasillach, condamné à mort le 19 janvier 1945.²
O texto é curiosíssimo. Apresenta Brasillach com um único atributo notável: ser filho de um mártir de guerra. Outros argumentos, alguns suscitados pela sua defesa – o de que, por exemplo, não participara pessoalmente de decisões ou atos de sangue contra franceses ou que a literatura perderia um talento excepcional – foram postos de lado. Em outras “intercessões” – como no caso de Astrojildo Pereira, a seguir – costuma-se pôr em relevo o caráter inofensivo do favorecido: seu estado de saúde, sua idade avançada, sua ingenuidade, seu despreparo para agir contra os poderes estabelecidos. No caso presente, anularam-no. A graça repousaria unicamente no discricionário do general.
Ela não veio. E Robert Brasillach foi fuzilado em 6 de fevereiro de 1945.
Astrojildo Pereira
A carta de Carlos Lacerda³ ao juiz-auditor Tinoco Barreto segue o que parece ser um dos padrões das cartas de intercessão.
Ao assinar a correspondência, o remetente dispensa o título de governador, como a sublinhar o caráter pessoal da comunicação. Inicia a carta informando que não tem por hábito “interferir em questões que não são de minha alçada” e garante respeitar “os motivos superiores que terão ditado a sua decisão, que equivale à decretação da prisão preventiva de Astrogildo Pereira que se encontra, por isso, recolhido ao hospital Militar da Guanabara”. Esclarece não ter com Astrogildo “qualquer traço de amizade pessoal. Nada lhe devo, nem a troca de ideias, pois as suas eu já as conheço e as minhas ele não entende”. E acrescenta, “Ninguém me solicitou coisa alguma e acredito também que ninguém me agradecerá”. Obedece a um dever de consciência: “Vejo um homem de setenta e quatro anos de idade, já vítima de infarto, submetido à prisão preventiva que, com a devida licença, me permito considerar desnecessária; pois ele não tem a esta altura da vida, nem periculosidade, nem meios de escapar à justiça”.
Em seguida, discorre sobre a ingenuidade de Astrojildo:
Foi um dos primeiros brasileiros a visitarem a Rússia depois da Revolução de 1917 e ali, pelo que sei, portou-se com a ingenuidade de um místico e o entusiasmo de um homem de bem, De tal modo descreveu as lutas no setor operário das fábricas de tecido do bairro da Gávea no Rio de Janeiro, a que chamou de Gávea Vermelha, que os homens do Komintern (Internacional Comunista), então desinformados sobre o Brasil, julgaram tratar-se de uma região já sovietizada. Tal era o ingênuo Astrojildo, idealista e homem de bem.
Finaliza a carta com uma requisição provocadora e elegante, agora como governador:
Se o meu depoimento pode ser de alguma valia, rogo-lhe que revogue a prisão de Astrojildo Pereira e nos permita mandar para casa esse velho escritor, que é a maior vítima do envenenamento das ideias. Caso não lhe seja possível, peço-lhe que não me reduza a uma situação com a qual não me conformaria: a de ser, na Guanabara, carcereiro de um homem que aprecio, que respeito e cujo crime em nenhum caso dói mais do que o crime que cometeríamos se o deixássemos morrer na prisão.
Logo após o recebimento desta carta, Astrojildo Pereira sairia da prisão em janeiro de 1965. Faleceria no final do mesmo ano.
Nelson Rodrigues Filho
O filho de Nelson Rodrigues, militante do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR8), organização política que participou da luta armada contra a ditadura militar brasileira, foi preso no dia 29 de março de 1972. Em junho de 1979, quando da carta pública de seu pai dirigida ao general João Batista de Figueiredo, discutia-se a Anistia e conjecturava-se sobre a exclusão do projeto de lei daqueles que haviam se engajado nos grupos armados de oposição. Embora intercedesse pelo filho, Nelson Rodrigues não deixa de proceder aos rituais da intercessão.
Começa por falar, no seu estilo habitual de cronista, da sua proximidade com o presidente da República:
O que eu queria te dizer é que é estranho ser bem tratado pelo presidente da República. (Um dia, eu, doente, precisei falar com o presidente. Ainda vacilei: presidente da República dando audiência ao telefone. Acabei ligando. Disse quem era e ele veio me atender. Admirável a recepção que me fez. Em grandes brados, me tratou na palma da mão. Eu tinha um pedido e o fiz. Se ele me atendeu, permitam uma certa discrição.) Bom. É chegado o momento de falar de anistia.
Seu filho está preso. É um fato. Não há que discutir o mérito de sua prisão. Apenas, sublinhar o seu sofrimento. E o faz de duas maneiras. Fala sobre a tortura, quando então Figueiredo é reposto na posição de autoridade:
A prisão não é tudo. (Preciso chamar você, novamente, de senhor.) O senhor precisa saber que meu filho foi torturado. Isso me foi ocultado pelo Nelsinho, por causa do meu estado de saúde.
O presidente volta a ser um próximo, quando procura enternecê-lo com a paternidade de Nelsinho: João Baptista, meu filho Nelsinho vai ter o filho na prisão, em agosto.
Finalmente, trata de reforçar e louvar o poder exclusivo, total do presidente. O que lhe daria a oportunidade de ser absolutamente magnânimo:
… um presidente não pode passar como um amanuense. Há uma anistia. Tem que ser uma anistia histórica. O que não é possível, presidente, é que seja uma anistia pela metade. […] Imagine o preso chegando à boca de cena para anunciar: — “Senhores e senhoras, comunico que fui quase anistiado.
Que se dirá em todas as línguas e sotaques? E que dirá o próprio Deus? Bem, nunca se acreditou tão pouco em Deus. Mas não importa, nada importa o que importa é o que disse Dostoievski, certa vez: — “Se Deus não existe, então tudo é permitido”.
Dirão os lorpas e pascácios: — “O presidente não está sozinho”. Está. Se der a anistia que Deus quer.
A Lei de Anistia de 15 de agosto de 1979 incluiu todos os envolvidos com os movimentos armados e Nelson Rodrigues Filho foi libertado naquela data.
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¹ A expressão é de Valéry (Introduction à la méthode de Leonardo da Vinci) e encontra-se em Benedito Nunes. João Cabral de Melo Neto. Poetas modernos do Brasil I. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1971. p. 42.
² Nós, os abaixo assinados, lembrando que o tenente Brasillach, pai de Robert Brasillach morreu pela Pátria em 13 de novembro de 1914, pedimos respeitosamente ao general de Gaulle, chefe do governo que considere favoravelmente o recurso de graça que lhe foi endereçado por Robert Brasillach, condenado à morte em 19 de fevereiro de 1945.
³ Datada de 30 de dezembro de 1964. Astrojildo havia sido preso em outubro do mesmo ano. Encontra-se em Carlos Lacerda/cartas 1933-1976, organização Cláudio Mello e Sousa e Eduardo Coelho. Rio de
Janeiro: Editora Bem-te-vi, 2014, p. 233-235.