Bruxelas, 21 de fevereiro de 1958

Iglésias,

Recebi hoje de manhã a sua carta. Afinal, por que me zanguei tanto com você? Porque você veio a Paris e não se lembrou sequer de me avisar onde estava, em que dia chegava etc.[1] Senti-me frustrado e perdemos uma boa oportunidade para nos encontrarmos e batermos um papo. Admito que minha carta, escrita em cima da bucha, ao primeiro movimento de exaltação, tenha sido antipática, irritante e até grosseira, do que, sinceramente, me penitencio. Foi, porém, uma reação franca, certamente desabrida, mas de amigo, magoado com o que julguei sua indiferença por um possível encontro nosso. É admissível que eu tenha então, até agora, superestimado a sua amizade por mim. Amizade é como esmola: pouca ou muita, não se recusa. Eu contei sempre você entre os meus melhores amigos. Não vou agora discutir esse episódio e azedar a nossa conversa. Fiquei, acredite, sinceramente desgostoso com tudo isso. Poderia responder à sua carta com uma volta aos fatos, que, a meu ver, me dão razão. Você abandonou os fatos e me mandou uma carta que, confesso, me surpreendeu. Seria melhor que você se tivesse zangado abertamente, quem sabe generosamente. Em todo caso, tudo isso se desculpa: você está viajando, deve ter feito a carta também ao primeiro impulso etc. Permita-me apenas que estranhe a desconfiança que você manifestou na minha amizade e no meu interesse por você. Isto me espantou! A minha própria reação nesse episódio não se justificaria, nem teria surgido, se a sua desconfiança tivesse qualquer sombra de veracidade. Pense de cabeça fria e conclua.

Enfim, não faltarão outras oportunidades para que a gente se encontre. De minha parte, julgando com sinceridade que a razão estava de meu lado, esqueço esse incidente e, sem ironia (recurso que eu detesto), se você me permite, até o perdoo. Aconteceu, passou. Você me disse uma vez, há anos, que o sofrimento moral é mais insuportável que o físico. Espero que eu não lhe tenha causado mágoa insanável ou duradoura. A amizade, para mim, vale mais do que Veneza.

Receba, pois, o abraço velho do seu amigo de sempre

Otto.

P.S.: Espero receber um cartão-postal seu de qualquer parte da Europa.

Responder falando:[2]

a carta dele, o fim…
a minha… em parte
“amadurecemos…”
o que significou…
o desinteresse dele e o meu…
Já encerrado. O que fomos
e o que somos.

Arquivo Otto Lara Resende / Acervo IMS.

[1] N.A.: Relendo sua carta, verifico que você informou, sim, o dia em que chegava. Retifico, pois.
[2] N.S.: Anotações feitas a lápis por Francisco Iglésias no verso da carta.