Rio de Janeiro, agosto de 1979
My dear,
Chove a cântaros. Daqui de dentro penso sem parar nos gatos pingados. Mãos e pés frios sob controle. Notícias imprecisas, fique sabendo. E de propósito? Medo de dar bandeira? Ouça muito Roberto: quase chamei você, mas olhei para mim mesmo etc. Já tirei as letras que você pediu.
O dia foi laminha. Célia disse: o que importa é a carreira, não a vida. Contradição difícil. A vida parece laminha, e a carreira é um narciso em flor. O que escrevi em fevereiro é verdade, mas vem junto drama de desocupado. Agora fiquei ocupadíssima, ao sabor dos humores, natureza chique, disposição ambígua (signo de gêmeos).
Depois que desliguei o telefone me arrependi de ter ligado, porque a emoção esfriou com a voz real. Ao pedir a ligação, meu coração queimava. E quando a gente falou era tão assim, você vendo TV e eu perto de bananas, tão sem estilo (como nas cartas). Você não acha que a distância e a correspondência alimentam uma aura (um reflexo verde na lagoa no meio do bosque)?
Penso pouco no Thomas. Passou o frio dos primeiros dias. Depois, desgosto: dele, do pau dele, da política dele, do violão dele. Mas não tenho mexido no assunto. Entrei de férias. Tenho medo que o balanço acabe. O Thomas de hoje é muito mais velho do que eu, não liga mais, estuda, milita e amor na sua Martinica de longos peitos e dentes perfilados, tanta perfeição.
Atraída pelo português de camiseta que atendeu no Departamento Financeiro. Era jacaré e tinha bigode de pontas. Ralhei com tesão que me deu uma dor puxada.
Só hoje durante a visita de Cris é que me dei conta que batizei a cachorra com o nome dela. Tive discreto repuxo de embaraço quando gritei com Cris que me enlameava o tapete. Cris fugiu, mas Cris não percebeu (julgando-se talvez homenageada?). Gil[1] por sua vez leu como sempre nos meus lábios e eclatou de riso típico umidificante.
O mesmo Gil jura que são de Shakespeare os versos “trepar é humano, chupar divino” e desvia o olhar para o centro da mesa, depois de diagnosticar silenciosamente minha paranoia.
Deu discussão hoje com Mary.[2] Segundo ela, Altmann é cruel com a classe média, e isso é imperdoável. Me senti acusada e balbuciei uma bela briga. Ao chegar em casa, pesou a mão imperdoável na barriga. Mary tem sempre razão.
Gil diz que ela não se abre comigo porque sabe que minha inveja é maior que meu amor. Ao telefone me conta da carreira e cacacá. Por Gil, porém, sei dos desastres do casamento. Comigo ela não fala.
Ontem fizemos um programa, os três. Nessas ocasiões o ciúme fica saliente, rebola e diz gracinhas que nem eu mesma posso adiantar. Ninguém sabe, mas ele tem levezas de um fetinho. E maternal, põe fraldas, enquanto o trio desanca seus caprichos. Resulta um show da uva, brilhante microfone do ciúme! Há sempre uma sombra em meu sorriso (Roberto). A melancólica sou eu, insisto, embora você desaprove sempre, sempre. Aproveito para pedir outra opinião.
Gil diz que sou uma leoa-marinha, e eu exijo segredo absoluto (está ficando convencido): historinhas ruminadas na calçada são afago para o coração. Quem é que pode saber? Eu sim sei fazer calçada o dia todo, e bem. Do contrário…
Não fui totalmente sincera.
Recebi outro cartão-postal de Londres. Agora dizia apenas “What are men for?”. Sem data.
Não consigo dizer não. Você consegue?
E a somatização, melhorou?
Insisto no sumário que você abandonou ao deus-dará: 1. bondade que humilha; 2. necessidade versus prazer; 3. filhinho; 4. prioridades; 5. what are men for.
Sonho da noite passada: consultório escuro em obras; homens trabalhando; camas e tijolos; decidi esperar no banheiro, onde havia um patinete, anúncios de pudim, um sutiã preto e outros trastes. De quem seria o sutiã? Ele dormiu aqui? Já nos vimos antes, eu saindo e você entrando? Deitados lado a lado, o braço dele me tocando. Chega para lá (sussurro). Ela deu minha blusa de seda para a empregada. Sem ele não fico em casa. Há três dias que pareço morar onde estou (ecos de Ângela). Aquele ar de desatenção neurológica me deixa louca. Saímos para o corredor. Você vai ter um filhinho, ouviu?
Passei a tarde toda na gráfica. O coronel implicou outra vez com as ideias mirabolantes da programação. Mas isso é que é bom. Escrever é a parte que chateia, fico com dor nas costas e remorso de vampiro. Vou fazer um curso secreto de artes gráficas. Inventar o livro antes do texto. Inventar o texto para caber no livro. O livro é anterior. O prazer é anterior, boboca.
Epígrafe masculina do livro (há outra, feminina, mais contida), do Joaquim: “E a crônica de uma tara gentil, encontro lírico nas veredas escapistas de Paquetá, imagética, verbalização e exposição de fantasias eróticas. Contém a denúncia da vocação genital dos legumes, a inteligência das mocinhas em flor, a liberdade dos jogos na cama, a simpatia pelos tarados, o gosto pela vida e a suma poética de Carlos Galhardo.”
Meu pescoço está melhor, obrigada.
Quanto à história das mães, acenando umas para as outras com lençóis brancos, enquanto a filha afinal não presta assim tanta atenção, só posso dizer que corei um pouco de ser tudo verdade. F. penso não percebe, mas como sempre mente muito. Mente muito! Só eu sei. Vende a alma ao diabo negociando a inteligência alerta pela juventude eterna. Você diria? No pacto é pura Rita Hayworth, com N. na cenografia, encaixilhando espelhos. Brincam de casinha na hora vaga. Na festa que deram, Gil alto discursava que casamento é a solução, mestre da saúde. Ironias do destino. Seguiu-se é claro ressaca sonsa e ciúmes rápidos de Rita.
Não estou conseguindo explicar minha ternura, minha ternura, entende?
Fica difícil fazer literatura tendo Gil como leitor. Ele lê para desvendar mistérios e faz perguntas capciosas, pensando que cada verso oculta sintomas, segredos biográficos. Não perdoa o hermetismo. Não se confessa os próprios sentimentos. Já Mary me lê toda como literatura pura, e não entende as referências diretas.
Na mesa do almoço, Gil quis saber a verdadeira identidade de um Jean-Luc, e diante de todos fez clima de conluio, julgando adivinhar tudo. Na saída me fez jurar sobre o perfil dos sepulcros santos – Gil está sempre jurando ou me fazendo jurar. E depois você ainda diz que eu não respondo.
Ainda aguardando.
Beijo
Júlia
P.S. 1 – Não quero que T. leia nossa correspondência, por favor. Tenho paixão, mas também tenho pudor!
P.S. 2 – Quando reli a carta, descobri alguns erros datilográficos, inclusive a falta do h no verbo chorar. Não corrigi para não perder um certo ar perfeito – repara a paginação gelomatic, agora que sou artista plástica.
Ana Cristina Cesar. A teus pés. São Paulo: Ática, 1998, pp. 117-121.
Trecho de Bruta aventura em versos, de Letícia Simões:
[1] N.S.: Trata-se do poeta Armando Freitas Filho.
[2] N.S.: Trata-se de Heloisa Buarque de Hollanda, a destinatária desta carta.